“Quando maior for o coro, na sociedade civil considerada, em todas as suas instituições, da delegacia de polícia às salas de aula, das famílias ao centro de saúde para onde as vítimas da brutalidade são encaminhadas, dos escritórios de advocacia aos CLUBES DE FUTEBOL*, daqueles que se indignam contra a brutalidade crescente no modo como tratamos o outro, hoje no Brasil, maior será o espaço de resistência à penetração brutal. Onde se instala a indignação, diminui a motivação para tais práticas”.
Sonia Felipe e Jeanine Philippi, 1998
Por Cida Alves
Por acreditar e defender a ressocialização de pessoas que cometeram crimes, mulheres e homens bem intencionados não enxergam o real interesse por trás da contratação do ex-goleiro Bruno. Cartolas e empresários do futebol não estão nem aí para a ressocialização do Bruno. A única coisa que lhes interessam é ficar cada vez mais ricos, conseguir dinheiro a qualquer custo.
Ressocialização envolve a reinserção no mundo do trabalho. Todavia, em
alguns casos é necessária uma readaptação de função ou mudança de profissão
para que o exercício do direito ao trabalho não implique em risco a pessoas vulneráveis.
Um autor de violência sexual, que possui o diagnóstico de transtorno de
pedofilia, não deve ocupar postos de trabalho que lidam diretamente com
crianças ou que possuam poder e influência sobre elas.
Você concordaria que um pedófilo fosse professor ou cuidador de crianças?
Bruno não é um criminoso comum. E, jogador de futebol não é uma profissão qualquer. O ex-goleiro Bruno cometeu um crime hediondo, um dos feminicídios mais cruéis da história criminal brasileira. O requinte de crueldade e o motivo torpe do crime cometido por Bruno demonstram sua incapacidade de sentir empatia pela mãe de seu filho. Julgado e condenado, Bruno nunca fez uma demonstração pública de culpa e remorso ante o crime cometido. Pessoas com traços de personalidade como os citados acima jamais deveriam ser alçadas a postos de grande poder e influência, muito menos elevado à condição de modelo de sucesso para crianças e jovens. No Brasil, jogador de futebol é ídolo para crianças e jovens. Para as crianças que vivem a realidade da pobreza, ser um jogador de sucesso é um sonho. Para elas, o futebol significa a única oportunidade de “subir na vida”.
Como psicóloga e estudiosa da educação, sei como meninos constroem seus valores e crenças. É por intermédio da identificação com pessoas significativas afetivamente, que pouco a pouco as crianças vão incorporando valores, aprendendo comportamento e construindo sua identidade masculina. Infelizmente, em nossa sociedade patriarcal, os ideais de sucesso masculino estão associados a práticas e valores violentos. O menino aprende desde cedo que tem que usar de violência para resolver seus conflitos. Para não ser uma “mulherzinha” deve sempre imperar sua vontade sobre os demais e jamais demostrar fraqueza. Não chorar, não expressar seus sentimentos, mostrar sempre quem manda! Bruno, com sua masculinidade tóxica e seu crime hediondo, jamais deve exercer uma profissão que tenha o mínimo de poder de influência sobre processos identificatórios e socializadores na formação de crianças.
Povos como os da Alemanha já compreenderam que símbolos violentos e personalidades autoritárias e cruéis não devem ser glorificadas. No mundo todo, estátuas de genocidas são derrubadas, nomes de ruas e praças que homenageavam ditadores e torturadores são substituídos. Por quê? Porque além das violências concretas que provocam sofrimento físico e morte, existem as violências simbólicas que ofendem nossa mente, nosso espírito. Permitir que o cruel assassino de Elisa Samudio se posicione no centro das três traves de um gol em campo de futebol e que uma multidão torça por ele é para nós, mulheres brasileiras, uma insuportável violência simbólica. E mais! Permitir que o tratem como celebridade, com direito a fotos abraçando crianças e capas de jornais destacando seus feitos é uma demonstração clara de que a vida das mulheres não importa, que os feminicídios podem ser banalizados e naturalizados.
O futebol é uma paixão nacional, os jogadores são modelos que inspiram crianças e jovens. O futebol também é uma instituição formadora, ele deve contribuir no fortalecimento de valores como justiça, igualdade, fraternidade e liberdade. Clubes e jogadores precisam enviar mensagens claras e firmes à sociedade, afirmando que o futebol não compactua com a violência contra as mulheres. Isso é fair play, um jogo limpo e justo de verdade!
Cida Alves – psicóloga, doutora em educação - Universidade Federal de Goiás em intercâmbio com a Universitat de Barcelona; cofundadora do Bloco NÃO É Não; administradora do blog Educar Sem Violência; e, há 24 anos trabalhando no SUS de Goiânia, acompanhando pessoas com sofrimento mental, em decorrência de situações de violência.
Em apoio ao Movimento #FeminicidaNãoMereceTorcida
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*As palavras em caixa alta não existem no texto original.
Fonte: FELIPE, Sônia T.; PHILIPPI Jeanine Nicolazzi. O corpo
violentado: estupro e atentado violento ao pudor. Um ensaio sobre violência e
três estudos de filmes à luz do contratualismo e da leitura cruzada entre
direito e psicanálise. Florianópolis: Ed. da UFSC. 1998.
Foto: Menino, chutando, um, bola futebol Foto Premium
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