Imagine
uma vítima de violência sexual que passa dois anos denunciando seu agressor
sem que nada aconteça. Imagine também que em meio a sua luta por justiça,
ela é humilhada, agredida e desrespeitada por quem um dia jurou defender a
lei e os direitos humanos.
Essa é a realidade da promotora de eventos Mariana Ferrer, que desde 2018
denuncia ter sido estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha. Na
semana passada, Mariana finalmente foi ouvida.
A reportagem do Intercept sobre o caso parou o país. Em
poucas horas o vídeo que mostra a violência a qual Mariana foi submetida
durante uma audiência se espalhou e foi visto por milhões, causando
indignação, mobilizando manifestações de apoio à jovem e expondo uma
realidade que afeta todos os dias as mulheres brasileiras. Furamos todas as
bolhas e conseguimos fazer com que todo mundo, do STF aos veículos de
imprensa, de deputados a artistas, jovens e idosos, todos olhassem para
aquela situação e pedissem justiça. O caso de Mariana, graças ao
jornalismo, não será mais um em que a vítima é esmagada por nosso sistema
penal. Não será mais um caso em que a vítima será "culpada" pela
violência que sofreu.
A reportagem de Schirlei Alves revelou imagens revoltantes, expôs a conduta
desrespeitosa, para dizer o mínimo, de Cláudio Gastão da Rosa Filho,
advogado do réu, e mostrou como vítimas de crimes sexuais são tratadas no
país. Mariana não é a única e por isso essa matéria teve uma repercussão
inédita na história do Intercept.
Na terça à noite o texto já havia sido lido por milhões. "Estupro
culposo", expressão que resume a absurda tese do promotor ao defender
a absolvição de Aranha, argumentando que o acusado não tinha como
saber se Mariana estava em condições de discernir ou de oferecer
resistência ao ato sexual, dominava as redes sociais e foi repercutida por
praticamente todos os veículos brasileiros. Vimos incrédulos o Jornal
Nacional exibir um material produzido pelo TIB — vocês sabem que isso não
aconteceu nem na Vaza Jato. Jornais e sites nos Estados Unidos, Espanha,
Portugal e França também noticiaram — para citar apenas o que nós vimos.
Atos foram realizados no Brasil e em outras capitais pelo mundo levando
milhares de pessoas às ruas. Pesquisadores, criminalistas, jornalistas,
professores, juízes escreveram sobre o caso, seus desdobramentos e, claro,
fizeram críticas ao nosso trabalho, o que é parte do jogo quando você
produz o tipo de jornalismo que nós produzimos. Tudo muito bem-vindo,
porque o jornalismo existe pra isso: para mobilizar a sociedade, denunciar
malfeitos, promover justiça, mudar o mundo.
Na Câmara Federal, grupos de deputadas protocolaram dois projetos de lei: o
5091/20, que tipifica o crime de “violência institucional” praticado por
agente público — com pena de três meses a um ano de detenção e multa; e
o 5960/2020, que veda qualquer parte envolvida e o juiz de se
manifestarem sobre fatos e provas que não estão nos autos. A Comissão
Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional repudiou a condução da
audiência e pediu a apuração da ação ou omissão de todos os agentes
envolvidos. O ministro do STF Gilmar Mendes classificou como “tortura” a
humilhação promovida contra Mariana e pediu investigação. A Procuradoria da
Mulher do Senado vai pedir a anulação da sentença que inocentou
Aranha.
Testemunhei nos últimos dias milhares de mensagens, vídeos, charges de
apoio a Mariana e ao nosso trabalho. Algo mudou de terça-feira pra cá e foi
o jornalismo o motor dessa mudança. Pela primeira vez vi um caso de
violência sexual mobilizar tanta gente e do jeito certo.
Histórias como essa são sempre difíceis de reportar. Porque expõem as
vítimas e podem causar sérios danos a elas. A gente nunca sabe como será a
repercussão e o que ela pode gerar. É preciso muito cuidado e paciência. Há
pouco tempo, trabalhamos exaustivamente nos casos relacionados ao produtor
Gustavo Beck, aquela história que foi marco do movimento Me Too no Brasil.
A repercussão também foi enorme, especialmente fora do país, e ficamos
felizes de ver que as vítimas não foram publicamente questionadas. O
jornalismo cumpriu seu papel e o fez da melhor maneira possível.
O caso de Mariana tomou outras proporções e foi muito, muito bom perceber
como foi positivo o retorno da sociedade. A vítima foi respeitada, acolhida
e a ela se juntaram milhões pedindo justiça. Como afirmei na nossa
newsletter de sábado junto com o editor Alexandre de Santi:
"Em meio a tanta dor, traz alento perceber a união formada em torno
dessa ideia simples e poderosa: se uma mulher for estuprada, jamais será
sua culpa, e muito menos podemos consentir com a tese de que alguém pode
cometer um ato sexual sem ter plena certeza de que a mulher consentiu. Não
existe estupro culposo."
Quis escrever para trazer um balanço dos impactos desse caso para você. Os
primeiros dias foram muito intensos e talvez você não tenha conseguido
acompanhar tudo. Eu também quero agradecer a cada pessoa que lê,
compartilha, espalha e defende o trabalho do Intercept. Milhões de novos
leitores chegaram no site na semana passada, mas você faz parte do nosso
time há um tempo e sabe que reportagens assim estão no coração do TIB.
Fazer investigações de grande impacto e responsabilizar pessoas com
poder para se safar da justiça é a nossa missão. O Intercept não
tem rabo preso, não tem acordo com governo, com empresas, com juízes. Nosso
único compromisso é com nossos leitores e com cada pessoa vítima de
injustiça. Essa independência e coragem nós devemos a pessoas como você,
que nos apoiam todos os dias, doando e nos protegendo dos ataques daqueles
que querem nos parar.
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