Em entrevista ao Portal Compromisso e Atitude Ana Iencarelli – psicanalista de crianças e adolescentes, atual presidente da ONG Vozes de Anjos e ex-presidente da Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência) – aponta os mitos criados em torno da ‘síndrome da alienação parental’, um conceito nunca aceito por órgãos mundiais de referência em saúde, como a OMS (Organização Mundial da Saúde), e que serviu de base para a aprovação da Lei de Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010) no Brasil, um dos únicos países em que ela ainda é aplicada. A psicanalista explica a controversa criação do conceito e alerta para os problemas ocasionados por sua aplicação no sistema de justiça brasileiro. De acordo com a especialista, enquanto mitos prevalecem em relação a esse debate, mães e crianças são penalizadas, enfrentando uma situação gravíssima: o risco de, ao denunciar um abuso sexual, perder a guarda de seus filhos justamente para o genitor abusador.
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O site da União pela Defesa da Infância traz informações sobre os mitos em torno da Lei 12.318/2010 da Alienação Parental, em documento elaborado por você e pela promotora de justiça Valéria Scarance (MPSP). Você poderia explicar um pouco como foi esse processo e por que hoje enfrentamos tantos problemas em decorrência dessa lei?
Então vamos começar pela história: o termo ‘alienação parental’ foi cunhado pelo médico norte-americano Richard Gardner, que não era psiquiatra e nem professor de Columbia, mas que se dizia ser as duas coisas. Na verdade, ele era apenas médico voluntário na Universidade e não havia feito a especialidade psiquiatria.
Gardner cunhou essa expressão porque ele começou a receber pedidos para fazer laudos de pessoas contra as quais havia acusação de abuso sexual ou agressão, de violência doméstica. Então, ele fez uma engenharia: criou um conceito que tira a questão do abuso da responsabilidade do abusador e leva para outra área, que é essa área que ele chamou de ‘alienação parental’. Ou seja, ele afirmava que as mães faziam a denúncia de abuso porque estavam ressentidas com o pai da criança – com o ex-marido ou ex-companheiro – e por isso queriam impedir o convívio da criança com o genitor. Então, para Gardner, todas as mães faziam alienação parental.
E não foi por acaso que Richard Gardner criou esse termo. Porque, inclusive, o comportamento que ele denuncia já existe no nosso Código Penal como crime de calúnia e difamação, quer dizer, já há tipificações para essas condutas. Mas Gardner coloca como sendo uma coisa nova e que facilmente pode convencer as pessoas, porque se baseia na confusão com comportamentos que são frequentes após a separação de um casal. É muito comum que no processo de divórcio o marido fale mal da mulher e a mulher fale mal do marido, porque eles estão vivendo um luto. Quando uma relação termina é um período de dor, mesmo para aquele que pediu o divórcio, porque ali morre um sonho, morre um projeto de família, morrem muitas coisas. E as pessoas enlutadas muitas vezes ficam raivosas, porque elas querem achar um culpado para aquilo. Por isso é comum encontrar casais recém-separados em que um fala mal do outro, um culpa o outro pelo fim da relação. Isso faz parte da dinâmica da separação, da dinâmica emocional da separação e é inclusive normal que os casais passem por isso. A juíza Maria Clara Sottomayor, do Tribunal Constitucional de Portugal, fala que esse é um processo de luto que dura um tempo. Mas depois, à medida que as pessoas refazem suas vidas, encontram outras pessoas, essa dor vai se diluindo.
É importante entender que não é porque uma pessoa está nesse período de luto pós-separação que ela vai inventar uma acusação de abuso sexual.
E Gardner ainda fez o seguinte: escolheu o termo ‘alienação’ na década de 1980; naquele contexto a palavra remete aos asilos, onde ficavam os alienados – os popularmente ditos malucos, os doentes mentais. Em asilos psiquiátricos horrorosos, em que as pessoas não tinham medicações, tinham surtos, manifestações agressivas, eram tidas como perigosas. Então, quando Gardner escolheu o termo ‘alienação parental’ não foi à toa, ele tinha a intenção de já colocar essa questão do alienado e do alienador – que para ele é só no feminino: é alienado e alienadora.
Outro mito é que a mulher só faz a denúncia depois da separação. Não é assim. É preciso conhecer melhor a dinâmica do abuso sexual intrafamiliar, ou incestuoso. Os abusos vão acontecendo dentro de casa e não deixam rastro, acontecem inclusive com bebês. E são praticados por uma pessoa que a criança ama e obedece. Quando acaba um abuso, muitas vezes a criança pensa que foi o último. Ela acha que no dia seguinte não vai acontecer. Mas aí acontece de novo. Ela pensa que foi o último e ela volta a tratar aquela pessoa normalmente, para ver se agrada e se no outro dia não é abusada. E isso pode durar anos.
Mas muitas vezes, após uma separação, quando a criança passa um dia, dois, três dias, uma semana, um mês e vê que o pai, que era o abusador, dorme muitos dias longe, então ela pode se sentir mais segura para dizer para a mãe o que o pai faz. Porque enquanto estão dormindo sob o mesmo teto é muito difícil para a criança denunciar o pai. As mães, às vezes, captam que aquilo está acontecendo antes ou, às vezes, uma professora, uma psicóloga que tenha capacitação – porque nas brincadeiras as crianças reproduzem o abuso e uma pessoa que seja capacitada pode entender essa comunicação. Mas, com palavras mesmo, a criança só vai comunicar quando se sentir suficientemente segura, o que pode acontecer pela distância do pai que era abusador.
E é exatamente aí que começa o problema, quando começa a violência do Estado.
Que vai exigir a prova da materialidade do abuso sexual infantil, mesmo sabendo que isso é muito difícil?
Não tem como provar materialmente. É muito raro ter uma prova material, e o que seria? Ter rompimento de hímen ou presença de sêmen? Em primeiro lugar, muitas vezes o abusador não realiza a penetração sexual completa – só quando ele é um doente ainda mais grave que não consegue dimensionar as consequências daquilo. Os abusadores usam de carícias, masturbação e sexo oral. Então, qualquer pessoa lúcida tem que pensar o seguinte: é possível o médico legista comprovar isso? Como?
E a criança tem uma capacidade regenerativa muito grande. Então, se ela não for vista imediatamente após, a lesão começa a regenerar. E aí o laudo fica inconclusivo – e é importante destacar que inconclusivo não quer dizer que não tenha havido, só está dizendo que não dá para concluir naquela perícia.
Só que, com a teoria do Gardner, você tira o foco do abuso sexual e põe em cima da mãe, que seria ‘alienadora’. E considerando o sistema de justiça que temos, muitas vezes despreparado, muitas vezes inclusive em condições materiais difíceis, achar um culpado na mãe ‘resolve tudo’, porque aí aquele processo sentencia e passa, vem o próximo. Então, esse instituto da alienação parental caiu como uma luva, porque facilita para todo mundo, sem mencionar ainda que é muito rentável do ponto de vista da advocacia. Os advogados estão ganhando muito dinheiro com esse tipo de defesa. E a não comprovação do abuso sexual já sai na mão do advogado e do promotor da vara de família como ‘prova’ de alienação parental.
Então, a situação é essa: você denuncia um abuso sexual e, se não for provado, você é que está fazendo alienação. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Um crime que não é provado não quer dizer que não tenha acontecido. Depois que uma mãe escuta do filho que ele está lá na casa do pai e ‘o pai está fazendo coisa com ele’, ‘fazendo guerra de piu-piu’, ‘botando o dedo no bumbum dele’, ‘passando o piu-piu na cara dele’ – é claro depois de escutar isso a mãe vai fazer tudo para o filho não ver mais essa pessoa. A mãe vai ficar desesperada, vai querer que se suspenda a visitação até o inquérito. Mas a perversidade maior é que praticamente não existe inquérito de abuso sexual. Quem faz essa dita investigação é a Vara de Família, que não é competente para isso, pois o abuso é da esfera criminal.
É uma revitimização para essa criança, quando ela tem coragem de expor toda essa situação e não é acreditada?
Sem dúvida, e dizer que a criança está mentindo, que ela está fantasiando. Uma publicação da Childhood Brasil, que fundamentou a Lei Federal 13.431/2017 sobre a escuta protegida, diz que, a partir de uma certa idade, a criança sabe dizer o que foi feito com ela, como foi feito e quem fez – mas é claro que ela usa as palavras dela. E não adianta vir dizer, como agora estão dizendo, que é implantação das ‘falsas memorias’. Eu sempre pergunto: onde que vendem esse chip de implantar coisas na cabecinha da criança, porque aí a gente implanta para ela fazer o dever de casa, gravar os conhecimentos de matemática e de português.
Ninguém implanta memória, porque o desenvolvimento cognitivo, o desenvolvimento da nossa inteligência, acontece em um primeiro período que vai até os 11 anos. E a inteligência nasce com a intencionalidade: quando a criança esbarra em um chocalho e o chocalho faz barulho – e ela sabe que foi o movimento dela que provocou – ela vai tentar repetir aquilo várias vezes, até que ela passe a fazer querendo. Aí começa a intenção de fazer aquele barulho. E ela faz operações muito simples, de acerto e erro, e vai selecionando o melhor comportamento para obter aquele resultado. Portanto, desde sempre, a primeira palavra que a criança fala é a palavra concreta, não adianta forçar, uma criança não vai falar sua primeira palavra sobre uma coisa que não faz parte do mundo dela e do mundo afetivo dela. Em geral, esse período operatório, das operações concretas, vai até os 11 anos e a criança precisa ver para crer e para guardar o conhecimento. É só a partir dos 11 anos que ela pode prescindir do objeto do pensamento. Ela não precisa estar vendo, nem pegando e nem cheirando – ela entra nas operações abstratas.
E a criança também não vai relatar aquilo porque viu, beijos na televisão, por exemplo. Mesmo que veja alguém namorando, o relato é diferente, porque ela não entende, ela não sabe. Então ela só vai falar disso quando sentir a língua de alguém dentro da boca dela. Aí chega a criança dizendo que ‘a língua do papai foi lá dentro da minha boca’; elas nem consideram como um beijo na boca, elas descrevem o que é. Então, isso está sendo distorcido de uma maneira perversa, de uma maneira criminosa.
Por outro lado, para a própria acusação de alienação parental também não há provas materiais, certo?
Pois é, a alienação parental é tão taxativa, é alienação parental e pronto. Aí se tira aquela criança da mãe de maneira violenta – porque o que tem sido feito, com busca e apreensão da criança, é criminoso. A Polícia Militar chega geralmente tarde da noite ou de madrugada, com oficial de justiça, arromba a casa, entra com arma em punho. A criança, que geralmente está dormindo, sai no colo do PM com a arma na mão e a mãe fica lá desesperada. Temos vídeos em que as mães foram imobilizadas no chão, com três, quatro homens segurando a mãe para poder arrancar a criança, porque a mãe fica desesperada, é claro. E aí levam a criança e entregam lá fora para o abusador.
Tem muitas mães que estão nessa situação e há anos sem ver os filhos, porque os juízes permitem que o pai não dê o novo endereço, eles se mudam, mudam a criança de escola, rompem todas as referências que a criança tinha e a mãe fica sem saber o que está acontecendo com o filho. Ela só sabe que, muito provavelmente, ele está sendo abusado todo dia. É terrível, tudo isso sob os ofícios da lei.
E tem um aspecto ainda: a condenação por alienação parental é feita em perspectiva, é futurista. A mãe é condenada pelo que se supõe que vai fazer mal àquela criança.
E aí os defensores da lei de alienação parental jogam um monte de afirmativas falaciosas, como a que diz que a criança, quando sofre alienação parental, fica deprimida, tem distúrbio comportamental. Na verdade, parece que eles copiaram uma listagem de comportamentos que podem ser alterados quando a criança está sendo abusada sexualmente – que inclusive estão registrados em uma cartilha da extinta Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência), em que colaborei na confecção.
Pegaram vários itens daquela lista e afirmaram que a alienação parental faz isso, opera essas alterações, inclusive leva ao suicídio. Eu tenho 45 anos de profissão e nunca tive notícia de algum filho que tivesse se suicidado porque a mãe falava mal do pai e o pai falava mal da mãe. Nunca e não tem estudo, não tem pesquisa, não há como provar isso. Mas em relação ao abuso sexual sim, há vários casos de mutilação, porque uma das sequelas do abuso sexual é odiar o próprio corpo, então você agride esse corpo – a pessoa tem nojo dele, tem vergonha dele, porque ele está sendo violado continuamente. O corpo da gente é o único bem durável que temos e aí uma pessoa a quem a criança ama e obedece – porque ela é uma figura de autoridade afetiva para essa criança – abusa dele.
Fonte: site Compromisso e Atitude Lei Maria da Penha
Crédito das imagens: Erick
Sales/ RodTag Fotografia
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