27 de set. de 2017

Redução da maioridade penal ignora estatísticas e falhas na educação, dizem especialistas - Rebeca Letieri, Jornal do Brasil

 Jovens protestam contra a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que prevê a redução da maioridade penal, em passeata no centro do Rio de Janeiro em 2015

A redução da maioridade penal voltou à discussão no Senado. Em meio à crise de segurança pública no país, e principalmente com os holofotes voltados para o Rio de Janeiro - onde a Rocinha vive dias de terror com confronto entre traficantes e a polícia -, a pauta ganha força entre parlamentares e ignora as estatísticas. Para especialistas no assunto, acreditar na redução como uma solução para a criminalidade não só retira os direitos da criança e do adolescente, como ignora o verdadeiro problema que deveria estar em pauta: a falta de investimento em educação. 

“Uma pergunta que eu sempre faço para as pessoas que defendem essa medida é: por que não colocar toda essa energia política que colocam pela causa da redução em favor do ensino público integral? Se a criança e o jovem estivessem estudando e bem alimentandos ao longo do dia, dificilmente estariam na rua assaltando as pessoas”, questionou o coordenador do movimento ‘Niterói Contra a Redução’, e advogado Marcos Kalil Filho.

A matéria que está na pauta para ser votada é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2012, que prevê a redução da maioridade penal para os jovens de 18 para 16 anos. Os senadores adiaram a votação que estava prevista para esta quarta-feira (20) na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. A pauta da comissão, da qual constavam mais de 40 itens, deve ser votada na próxima semana. Se o texto for aprovado na CCJ, ele seguirá direto para o plenário do Senado, onde deverá passar por duas votações. São necessárias a aprovação de 49 dos 81 deputados. 

Diante da polêmico do assunto, senadores argumentaram que não teriam tempo suficiente essa semana para fazer o contraponto ao texto do relator, o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), favorável à mudança.

O tema havia sido uma das principais bandeiras do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), hoje preso pela Operação Lava Jato. Depois dos desgastes sofridos pelos parlamentares ligados a Cunha, a pauta havia sido esquecida no Congresso desde meados de 2015.
Para Marcos Kalil, a proposta volta à pauta do Congresso com base no que ele chamou de “populismo penal”. 

“A população brasileira, da elite às estratificações mais baixas, veem na redução da maioridade penal uma saída concreta para a percepção crescente da violência urbana. Logo, para os políticos, o tema é um chamariz. Chama a atenção do eleitorado, garantindo holofotes e, quem sabe, alguns votos. Estamos praticamente em ano eleitoral”, completou.

Críticas
As críticas de parlamentares e movimentos sociais diversos que atuam na área de Direitos Humanos são extensas e o debate está longe de ser novo ou simples. O Ministério dos Direitos Humanos (MDH) divulgou nota na última quarta-feira (20) em que manifesta "profunda preocupação" quanto à PEC. O órgão diz que o texto é inconstitucional, ignora o "colapso" do sistema prisional brasileiro e viola direito dos adolescentes.

Ressalta também que a Constituição de 1988 prioriza a criança e o adolescente e estabelece o "dever do Estado, da família e da sociedade em assegurar-lhes direitos básicos, colocando-os a salvo de toda forma de violência, crueldade e opressão." "Além de violar cláusula pétrea constitucional, a proposta afronta parâmetros protetivos internacionais, que o Estado brasileiro se comprometeu a cumprir, como a Convenção sobre os Direitos da Criança", completou.

A proposta original de redução da maioridade penal, que já era criticada por estes movimentos, estabelecia a redução para os crimes hediondos, tortura, terrorismo, tráfico de drogas e casos repetidos de roubo qualificado e agressão física. O autor é o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), atual ministro de Relações Exteriores.

Marcos explica que a PEC 33/2012 não é o mesmo projeto que foi aprovado na Câmara no passado. Ela permite que o juiz desconsidere a inimputabilidade de um jovem entre 16 e 18 anos para puni-lo conforme um adulto, se assim julgar necessário. 

“Ainda assim, se insere no campo da redução da maioridade penal, pois abre um perigoso precedente de ameaça aos direitos da criança e do adolescente”, disse o advogado, acrescentando: “Difícil pensar que, na prática, com uma Justiça classista e racista, a maioria dos casos de adolescentes infratores que se encaixarem em um perfil racial e sócio-econômico específico não será tratada pelos juízes como imputável. Além disso, com a espetacularização da justiça, casos de grande repercussão ensejarão pressão pública extra sobre os ombros dos magistrados para que eles punam esse ou aquele réu”.

Além do ministério, diversas entidades como ONU, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, OAB, Associação dos Magistrados Brasileiros, CNBB e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, criticam a proposta. 

Estatísticas

Apontada como solução para os altos índices de criminalidade, a medida pode ser contestada pelas próprias estatísticas sobre a violência no país. Ao contrário do que se diz, estudos apontam que o jovem, pobre e negro da periferia é a maior vítima da criminalidade.

Entre 2010 e 2012, os atos infracionais cometidos por jovens contra a pessoa diminuíram. O homicídio, por exemplo, passou de 14,9% do total dos tipos de conduta para 9% e o estupro chegou a 1,4%. Dos 21 milhões de meninos e meninas entre 12 e 18 anos, apenas 90 mil incorreram em atos infracionais até 2011.

“Não há base estatística para a redução da maioridade penal. Os números de delitos cometidos por jovens é muito baixo. O que há é uma lente de aumento que a mídia põe sobre esses casos”, explicou Marcos. 

Além disso, o Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo com mais de 715.00 presos. Entre 1992 e 2013, o país teve o maior aumento desse contingente no mundo. No sistema prisional para maiores de 18 anos, o indivíduo volta a cometer um crime em 80% das vezes. 

“Privar uma pessoa de liberdade não promove a sua socialização com quem está fora dela. Seja em uma prisão luxuosa, seja nos depósitos de corpos brasileiros. O agravante daqui é que as péssimas condições de vida das prisões são crimes de Estado contra o indivíduo. Além disso, muitos entram sem nenhuma ligação com organizações criminosas e saem ligados a elas”, completou o advogado.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também se manifestou contra a proposta que voltou à pauta nessa semana. “Reduzir a maioridade penal não resolverá o problema de segurança e dos altos índices de violência. No Brasil, os adolescentes são hoje mais vítimas do que autores de atos de violência”, disse a agência da ONU em nota. “O país precisa se comprometer com a garantia de oportunidades para que suas crianças e seus adolescentes se desenvolvam plenamente, sem nenhum tipo de violência”.

Medidas socioeducativas

Mesmo sendo exceção, a pergunta que paira sobre a maioria da população é com relação a punição para esses jovens, que se não vão para as prisões, vão para onde? Os dados indicam que, entre 1996 e 2012, houve um aumento de 294% no número de adolescentes encarcerados, alcançando quase 21 mil jovens reclusos. 

“O senso comum acredita que o adolescente não é responsabilizado. Todos são responsabilizados a partir dos 12 anos. As pessoas desconhecem o fato de que o adolescente tem a medida socioeducativa como uma possibilidade dele refletir sobre o ato praticado. As instituições são as responsáveis por aplicar essas medidas. Em vez disso, atacam em outra vertente que é aumentar o tempo de internação ou reduzir a maioridade penal como se isso fosse resolver o problema da segurança”, explicou Sidney Teles, ex diretor-geral do Degase, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas, órgão vinculado a Secretaria de Estado de Educação.

O jovem entre 12 e 17 anos que sai do sistema socioeducativo, para onde ele é encaminhado hoje, volta a cometer crimes apenas 16% das vezes. Entre 2010 e 2012, houve um aumento de 33% na aplicação de medidas socioeducativas, alcançando quase 90 mil adolescentes. “A percepção da população a partir da publicidade que se dá a casos com menores infratores é maior do que a repercussão de um ato praticado por um adulto. E aí volta essa pauta de reduzir como solução, para um problema que, na verdade, envolve outras questões como a falta de educação, saúde e cultura”, disse. 

Sidney citou a caso recente na Rocinha que deixou quase 2,5 mil alunos da rede municipal de ensino sem aula na última sexta-feira (22) por causa de conflitos entre policiais e criminosos. E lembrou do caso no Jacarezinho mês passado: ao todo, nove escolas, quatro creches e dois Espaços de Desenvolvimento Infantil da região precisaram ser fechadas, totalizando 15 unidades escolares. Com isso, cerca de 6.200 alunos da região permaneceram sem aulas.
“Mas isso não tem o impacto que deveria ter numa sociedade evoluída”, acrescentou.

E finaliza: “Desde a sua promulgação, o estatuto é tratado como uma lei avançada para o nosso país. Eu diria que o país é que é atrasado para tratar dos direitos da criança e do adolescente. Se pensarmos no Rio, que condição [educação, cultura e saúde] nós estamos oferecendo a essas crianças para que nós tenhamos esse pensamento de reduzir a maioridade? Em vez de construir mais escolas, construímos mais prisões. Nós estamos retrocedendo. E os mais penalizados com isso são as crianças e adolescentes que vivem em situação de maior vulnerabilidade social”.
 Fonte: Jornal do Brasil, 23 de setembro de 2017.

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