Assistam o trailer do filme "Um homem bom"
Por Ruth Manus
Esforçou-se para encaixar-se no padrão de bom homem. Tinha uma pequena empresa
Carlos
era um homem, uma vez que esta foi a classificação feita pela ciência e
atestada pelo médico no dia do seu nascimento em 1959. Homem. Mas além de
homem, Carlos classificou a si próprio dentro de uma outra subdivisão, criada
pelo senso comum, ratificada pela igreja e coroada por sua consciência: ele era
um bom homem. Carlos gostava de dizer em voz alta “sou mais do que um homem,
sou um bom homem”.
Carlos
tinha a certeza de reunir as duas características mais elevadas que um ser
humano poderia ter na sua visão: era homem e era bom. Homens que não eram bons
mereciam seu desprezo. Mulheres, para ele, só eram analisadas na ótica de boa
esposa, boa mãe e boa filha. Era, ao mesmo tempo, o mínimo e o máximo que
Carlos via numa mulher.
Era
engenheiro um de classe média alta, casado, trabalhador, pai de três filhos,
católico. Esforçou-se muito para encaixar-se no padrão de bom homem. Tinha uma
pequena empresa de engenharia, com 9 empregados. Sonegava impostos para que a
empresa sobrevivesse. Não pagava horas extras nem adicional de insalubridade,
uma vez que se o fizesse as contas da empresa não fechariam no fim do mês. Mas,
curiosamente, sobrava dinheiro para jantar no Eataly, para levar a família para
Miami e Trancoso, bem como para as revisões da sua Tucson.
Amava
sua mulher. Nunca deixou que nada faltasse em casa. Seu nome era Márcia e
Carlos considerava-a uma “boa esposa”, uma vez que cuidava da família, da casa
e não reclamava dos dias em que ele chegava tarde, afinal, a carne era fraca e
a Márcia já tinha passado dos 50. Carlos era um bom homem, vítima do corpo da
mulher que já não era o mesmo depois de 3 filhos e vítima do oportunismo e do
charme da assistente do seu contador, com quem mantinha um caso nos últimos
anos. Carlos tinha a certeza de que um bom homem é sempre vítima.
Carlos
educou bem os filhos. Gritou frases de ordem como “menino não chora”; “isso não
é roupa para filha minha”; “arte não é carreira”; “filho meu não perdoa um bom
par de pernas” e “se eu souber que você está dormindo com aquele vagabundo,
você já não é minha filha”. Batizou, mandou fazer primeira comunhão e crismou.
Nunca teve tempo para brincar com eles, porque julgava que o papel de um bom
pai é prover e, chegando em casa, só queria o controle remoto.
Era politicamente ativo.
Sabia do que estava falando. Chamava o governo de “aquela corja”, dizia que os
partidos eram todos a mesma merda, chamava tudo o que não fosse conservador de
comunista e protestava contra a corrupção vestindo uma camisa da CBF,
instituição menos corrupta do País. Carlos não era de direita nem de esquerda.
Vivia uma certa crise, pois gostava do quanto a empresa lucrava no governo
Lula, mas não gostava de dividir o voo para a Bahia com empregadas domésticas
que iam visitar a família. Gostava do Fernando Henrique, mas achava que
sociólogo era profissão de vagabundo maconheiro. Dilma ele não se dava o
trabalho de avaliar, pois não era a boa esposa de ninguém. Em relação a Temer
ele tinha lá suas dúvidas, mas aplaudia de pé aquela maravilha de mulher que
ele tinha.
Carlos era um bom homem. Era
a favor da vida. E a favor da pena de morte. Era um homem coerente, acima de
tudo. Carlos orava pela mãe da sua secretária, que tinha sofrido um AVC.
Abominava toda forma de violência, sobretudo a sexual, pois tinhas filhas
mulheres. Era um bom homem.
Nesta semana Carlos riu muito
da prisão de Eike Batista e torceu para que ele virasse a “boneca” do presídio,
para aprender a lição. Carlos comemorou o AVC de Dona Marisa. Propôs um brinde.
Comemorou ainda mais a sua morte. Disse “tchau, querida”. Carlos era um bom
homem. Frequentava a igreja, era contra a violência, contra a corrupção e a
favor da vida. Carlos era um bom homem.
Recomendo ainda a leitura do artigo abaixo:
Poema da purificação ou quem nos protegerá da bondade dos bons?
Foto: imagem do filme “Um homem bom”
Fonte: Estadão, 5 de fevereiro de 2017
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