Em que mundo do trabalho estamos inseridos?
Depois de um período aparentemente estável do pós-guerra, o ano de 1968
chacoalhou a “calmaria” que parecia vigorar no mundo do welfare state:
os levantes em Paris, que se espalharam por tantas partes do globo,
estampavam o novo fracasso do capitalismo. Os operários, os estudantes,
as mulheres, a juventude, os negros, os ambientalistas, as periferias e
as comunidades indígenas chamavam atenção para um novo e duplo fracasso.
De um lado, cansaram de se exaurir no trabalho, sonhando com um paraíso
que nunca encontravam. O capitalismo do Norte ocidental procurava
fazê-los “esquecer” a luta por um mundo novo, alardeando um aqui e agora que lhes escapava dia após dia.
De outro lado, o chamado “bloco socialista”, originado em uma revolução
socialista que abriu novos horizontes em 1917, havia se convertido,
desde a contrarrevolução do camarada Stalin, em uma ditadura do terror
especialmente contra a classe operária que, em vez de se emancipar, se
exauria em um trabalho infernal em que o sonho cotidiano principal era
praticar o absenteísmo no trabalho.
O ano que abalou o mundo foi duramente derrotado pelas poderosas forças repressivas que sempre se aglutinam quando a ditadura do capital é questionada. Das revoltas na França ao massacre dos estudantes no México e a repressão às greves do Brasil. Do autunno caldo
(outono quente) da Itália ao Cordobazo na Argentina, os aparatos
repressivos da ordem conseguiram estancar a era das rebeliões,
impedindo-as de se converterem em uma época de revoluções. Adentrávamos,
então, no início da década de 1970, em uma profunda crise estrutural: o
sistema de dominação do capital chafurdava em todos os níveis: econômico, social, político, ideológico, valorativo, obrigando-o a desenhar uma nova engenharia da dominação.
Foi nesse contexto que se começou a gestar uma trípode profundamente
destrutivo. Esparramaram-se, como praga da pior espécie, a pragmática neoliberal e a reestruturação produtiva global, ambos sob o comando hegemônico do mundo das finanças. E
é bom recordar que essa hegemonia significou não somente e expansão do
capital fictício, mas também uma complexa simbiose entre o capital
diretamente produtivo e o bancário, criando um monstrengo de novo tipo,
uma espécie de frankenstein horripilante e desprovido de qualquer
sentimento minimamente anímico.
As principais resultantes desse processo foram desde logo evidenciadas:
deu-se uma ampliação descomunal de novas (e velhas) modalidades de
(super)exploração do trabalho, desigualmente impostas e globalmente combinadas pela nova divisão internacional do trabalho na era dos impérios. Para tanto, foi preciso que a contrarrevolução burguesa de amplitude global
exercitasse sua outra finalidade precípua, qual seja, a de tentar
destruir a medula da classe trabalhadora, seus laços de solidariedade e
consciência de classe, procurando recompor sua nova dominação, em todas as suas esferas da vida societal.
Nasceu, então, um novo dicionário empresarial no mundo do
trabalho, que não para de crescer. “Sociedade do conhecimento”, “capital
humano”, “trabalho em equipe”, “times ou células de produção”,
“salários flexíveis, “envolvimento participativo”, “trabalho
polivalente”, “colaboradores”, “PJ” (pessoa jurídica, denominação
falsamente apresentada como “trabalho autônomo”). E mais:
“empreendedor”, “economia digital”, “trabalho digital”, “trabalho
on-line” etc. Todos impulsionados por “metas” e “competências”, esse
novo cronômetro da era digital que corrói cotidianamente a vida no
trabalho.
Na contraface desse ideário apologético e mistificador, afloraram as
consequências reais no mundo do trabalho: terceirização nos mais
diversos setores, informalidade crescente; flexibilidade ampla (que
arrebenta as jornadas de trabalho, as férias, os salários);
precarização, subemprego, desemprego estrutural, assédios, acidentes,
mortes e suicídios. Exemplos se ampliam em todos os espaços, como nos
serviços comoditizados ou mercadorizados. Um novo
precariado aflora nos trabalhos de call centers, telemarketing,
hipermercados, hotéis, restaurantes, fast-foods etc., onde vicejam a
alta rotatividade, a menor qualificação e a pior remuneração.
Turbinados pela lógica das finanças, em que técnica, tempo e espaço se
convulsionaram, a corrosão dos direitos do trabalho tornou-se a
exigência inegociável das grandes corporações, apesar de seus ideários
apregoarem mistificadoramente “responsabilidade social”,
“sustentabilidade ambiental” (a Samarco e a Vale que o digam),
“colaboração”, “parceria” etc.
Na esfera basal da produção, prolifera o vilipêndio social e, no topo,
domina o mundo financial. Dinheiro gerando mais dinheiro na ponta
fictícia do sistema e uma miríade interminável de formas precárias de
trabalho que se esparramam nas cadeias globais produtivas de valor. Dos
Estados Unidos à Índia, da Europa “Unida” ao México, da China à África
do Sul, em todos os cantos do mundo se expande essa pragmática letal ao
trabalho e seus direitos. E esse vilipêndio só é estancado quando há
resistência sindical, luta social e rebelião popular, como na França de
hoje e no Chile de ontem.
Ressuscitam-se formas de trabalho escravo e degradam-se além do limite
os trabalhos dos imigrantes. Isso sem falar do engodo do “trabalho
voluntário”, frequentemente imposto e compulsório, pois ninguém consegue um emprego se não estampar em seu curriculum vitae a realização de “trabalho voluntário”. Ou seja, uma atividade originalmente volitiva se transmuda em sua caricatura, convertendo-se em uma nova forma “moderna” de exploração compulsiva.
Na Feira Internacional de Milão, em 2015, e nas Olimpíadas de 2016, no
Rio de Janeiro, só para dar dois exemplos, a mistificação se acentua
exatamente onde lucros incalculáveis são obtidos por grandes corporações
do “entretenimento”. E o Brasil não poderia ficar fora dessa.
O governo Temer, a nova fase da contrarrevolução neoliberal e o desmonte da legislação social do trabalho
Sabemos que o neoliberalismo vem se efetivando por meio de um movimento
pendular, quer por governos neoliberais “puros”, quer pela ação de
governos mais próximos do social-liberalismo; em ambos os casos, os
pressupostos fundamentais do neoliberalismo se mantêm essencialmente
preservados.
Desde quando começou a ser efetivamente introduzida no Brasil, a partir
da década de 1990, a pragmática neoliberal teve claras consequências:
aumento da concentração de riqueza, avanço dos lucros e ganhos do
capital, incrementados com a privatização de empresas públicas, além de
deslanchar a desregulamentação dos direitos do trabalho. Foi assim com
Collor e FHC.
Os governos do PT foram exemplos exitosos da segunda variante, ao
introduzir uma política policlassista fortemente conciliadora,
preservando e ampliando os grandes interesses das frações burguesas.
Mas havia um ponto de diferenciação, dado pela inclusão de programas
sociais, como o Bolsa Família, voltado para os setores mais
empobrecidos, além da introdução de uma política de valorização do
salário mínimo limitada, mas real, apesar dos níveis de salário mínimo
no país serem absurdamente rebaixados. Basta compará-lo ao salário
mínimo indicado pelo Dieese.
Enquanto o cenário econômico era favorável, o país parecia estar em um círculo virtuoso.
Com o agravamento da crise econômica global (que teve como epicentro os
países capitalistas do Norte e aqui se intensificou posteriormente),
porém, esse mito começou a evaporar.
As rebeliões de junho de 2013 foram os sinais mais evidentes do enorme
fracasso que se avizinhava, mas foram olimpicamente desconsideradas pelo
governo Dilma. Esse quadro crítico se acentuou durante as eleições de
outubro de 2014, quando começou a se verificar uma retração crescente do
apoio das frações dominantes, uma vez que a intensificação da crise
econômica indicava que esses setores que até então respaldavam (e
ganhavam muito com) os governos do PT começaram a exigir um ajuste
fiscal que acabou por ter uma dupla e trágica consequência. Por um lado,
levou à crise terminal do governo Dilma e, por outro, ao desalento de
inúmeros de seus eleitores nas classes populares, que a viram realizar o
que dizia recusar na campanha eleitoral. De lá para cá, a história é de
todos conhecida.
Consolidou-se a “alternativa ideal” das frações burguesas, agora em
aberta dissensão: impossibilitada de ganhar pelas urnas, chegava a hora
de deflagrar um golpe que teve no Parlamento seu lócus decisivo.
Aqui vale um breve parêntese. Marx disse que o Parlamento francês, em
meados do século XIX, vivenciou uma “degradação do poder” que lhe
retirou “o derradeiro resquício de respeito aos olhos do público”.1
O que dizer, então, do Parlamento brasileiro recente, no qual viceja um
enorme núcleo que exercita solenemente sua forma pantanosa?
Assim, nossa transição pelo alto desencadeou uma nova variante de golpe
(já experimentada em Honduras e no Paraguai, para ficarmos na América
Latina), que precisava “arranjar” algum respaldo legal. E o fez
recorrendo tanto à judicialização da política quanto à politização da justiça.
Sempre com o apoio das grandes corporações midiáticas e com a ação, nas
sombras, comandada pelo vice Temer e pela batuta indigente de Cunha na
Câmara, ambos aliados do PT na época de lua de mel com o PMDB.
Tudo isso parece conferir plausibilidade a algumas formulações de Agamben,2
uma vez que toda essa ação está perigosamente nos aproximando a uma
forma (contraditória?) de “estado de direito de exceção”. E o golpe parlamentar
que levou à deposição de Dilma, sem provas cabais – e ao mesmo tempo a
isentou de perda dos direitos políticos (em mais uma flagrante
incongruência jurídica) –, reiterou a farsa ao condenar uma presidenta por um crime que o mesmo Parlamento reconhece que ela não cometeu.
Tudo isso para que o governo golpista siga à risca a pauta que lhe foi imposta, uma vez que os capitais exigem, neste momento de profunda crise, que se realize a demolição completa dos direitos do trabalho no Brasil.3
Dado que essa programática não consegue ter respaldo eleitoral, o golpe
foi seu truque. Talvez por isso possamos denominá-lo, irônica e
tragicamente, de um verdadeiro governo terceirizado.
Iniciou-se, então, uma nova fase da contrarrevolução preventiva, para recordar novamente Florestan Fernandes,4 agora de tipo ultraneoliberal.
Sua principal finalidade: privatizar tudo que ainda restar de empresa
estatal, preservar os grandes interesses dominantes e destroçar os
direitos do trabalho.
Em seu conhecido documento inspirador, Uma ponte para o futuro,
cujo abismo social resultante não para de se intensificar, está
estampado a trípode destrutiva a ser colocada em prática nos trópicos:
privatizar o que ainda não o foi (em que o pré-sal se destaca como
vital); impor o negociado sobre o legislado
nas relações de trabalho, em um período em que a classe trabalhadora tem
apontada uma espada no coração e um punhal nas costas, pelo flagelo do
desemprego que não para de crescer; e, por fim, introduzir a flexibilização total das relações de trabalho, começando pela aprovação da terceirização total (conforme consta do PLC 30/2015).
E, para que a devastação seja completa, é preciso aviltar a
Constituição de 1988, o que não é tarefa nada difícil para o Parlamento
no qual o pântano é movediçamente oscilante. Basta um bom movimento
negocial.
O objetivo perfilado pelo atual governo de Michel Miguel, no universo
das relações de trabalho, é corroer a CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho) – que a classe trabalhadora compreende como sendo sua
“verdadeira Constituição do trabalho” – e dar cumprimento à “exigência”
do empresariado (CNI, Febraban e assemelhados), cujo objetivo não é
outro senão instalar imediatamente o que denominei como “sociedade da
terceirização total”.5
Não é outro o significado do PLC 30/2015. Depois de obter, anos atrás, a terceirização das atividades-meio, chegou a hora do outro
golpe. Terceirizar tudo, com o encobrimento falacioso e perverso de que
o dito PLC quer conferir direitos aos terceirizados. Mas ficam algumas
perguntas centrais.
Primeira: se o empresariado, tempos atrás, justificava a terceirização das atividades-meio para se manter qualificado e focado nas atividades-fim, o que mudou agora? A resposta é direta: o embuste agora é outro e o mal dito vira desdito.
Segunda: se o empresariado quer garantir direitos aos terceirizados,
por que exatamente nessas empresas de terceirização a burla e a fraude
são mais a regra do que a exceção?
Terceira: os empresários dizem que a terceirização cria empregos. Mas,
como os terceirizados têm em média jornadas diárias ainda mais longas,
pode-se concluir, por exemplo, que mais terceirizados podem fazer o
trabalho de menos celetistas. Evidencia-se, então, que não há aumento de
empregos, e sim maior desemprego, uma vez que de fato a terceirização é
uma forma de redução de custos e de trabalho regulamentado.
Quarta: se os empregos terceirizados são assim tão bons, por que é
exatamente nesse setor que os acidentes, os assédios, as lesões e as
mortes no trabalho são muito mais intensas?
Quinta: por que nesse universo do trabalho, no qual é intensa a
presença feminina, são ampliados os abismos decorrentes da divisão
sexual do trabalho, em que as mulheres recebem menos, têm menos direitos
e ainda exercem uma dupla (quando não tripla) jornada de trabalho?
Sexta: a quem interessa fragmentar ainda mais a classe trabalhadora,
ampliando as diferenciações intra-assalariados e dificultando ainda mais
sua organização sindical?
A lista de perguntas seria quase interminável e o espaço já foi ultra-
-passado.
Aqui reside o segredo de Polichinelo: para garantir a alta remuneração
dos capitais, vale devastar toda a população trabalhadora, começando
pela destruição completa do que resta de seus direitos do trabalho, da
previdência, da saúde e da educação públicas. Nem uma palavra sobre
redução dos juros, tributação dos bancos, dos capitais e das grandes
fortunas. Nada. Para isso deu-se a assunção do governo terceirizado. Só
as lutas sociais poderão fazê-lo submergir.
Ricardo Antunes é professor e sociologo da Unicamp
Ilustração: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
1 Karl Marx, 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974, p.39.
2 Giorgio Agamben, Estado de exceção, Boitempo, São Paulo, 2004.
3 Era chegada a hora de os capitais terem um governo-de-tipo-abertamente-gendarme,
independentemente de quão úteis para as classes dominantes foram os
governos do PT. Ver Ricardo Antunes, “Fenomenologia da crise
brasileira”, Revista Lutas Sociais, v.19, n.35, dez. 2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/26672/pdf.
4 Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, Zahar, São Paulo, 1975.
5 Ver Ricardo Antunes, “A sociedade da terceirização total”, Revista da ABET, v.14, n.1, jan.-jun. 2015. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/25698/13874.
Fonte: Diplomatique, 3 de outubro de 2016.
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