13 de nov. de 2014

Lei Menino Bernardo amplia rede de proteção a crianças e adolescentes

 

Na semana passada, o caso do menino Jonathan Neres, de 12 anos, morto pelo pai por espancamento, em Riberão Preto (SP), chamou a atenção de todo o país sobre maus-tratos a crianças e adolescentes. No Senado, acabava de ser aprovado o projeto de lei que determina que entidades que atendem crianças e adolescentes tenham pessoas capacitadas para reconhecer maus-tratos e denunciá-los (PLS 417/2007).

A história de outro menino, Bernardo Boldrini, de 11 anos, inspirou a aprovação de uma lei importante na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, a Lei 13.010/2014, que recebeu o nome de Lei Menino Bernardo em homenagem a ele.

O corpo de Bernardo foi encontrado em abril deste ano enterrado às margens de uma estrada em Frederico Westphalen (RS). O pai e a madrasta são suspeitos de terem participação na morte do garoto.

A lei estabelece que a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante. E não só pelos pais, mas também pelos integrantes da família, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.

A coordenadora da Rede Não Bata, Eduque, Márcia Oliveira, trabalha na conscientização de pais e profissionais sobre a violência contra a criança e o adolescente. Ela defende a lei como forma de combater um problema que é cultural:

— Nós acreditamos que a Lei Menino Bernardo vai servir para o enfrentamento dessa questão cultural, como a Lei Maria da Penha serve e é um importante instrumento para a defesa das mulheres — afirma.

Histórico

O Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, desde 24 de setembro de 1990. Ao ratificar a convenção, o Estado brasileiro assumiu a obrigação de assegurar à criança o direito a uma educação não violenta.

Para efetivar o direito, em 2003 a então deputada Maria do Rosário encaminhou o Projeto de Lei 2.654, que também considerava necessária a efetiva implementação dos avanços introduzidos pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O projeto tramitou na Câmara dos Deputados, mas, em 2010, o Poder Executivo encaminhou outro projeto de lei, o PL 7.672, que substituiu o primeiro e deu origem à Lei Menino Bernardo.

A senadora Ana Rita (PT-ES) foi relatora do projeto na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), onde o assunto foi debatido no Senado. Para Ana Rita, a intenção é mudar a forma como as crianças devem ser educadas.

— O objetivo é possibilitar aos pais, aos educadores e às crianças condições de dar uma educação diferente. Uma educação na base do diálogo e na base da conversa para que as crianças possam receber dos pais uma orientação adequada de como devem se comportar — alerta a senadora.

No início, porém, a Lei Menino Bernardo foi chamada de “Lei da Palmada”. O apelido era reflexo do receio de algumas pessoas de que a lei impediria os pais de dar a famosa “palmadinha” nos filhos. A senadora Ana Rita fala do mal-entendido gerado pela lei:

— Na verdade, havia uma interpretação equivocada a respeito do projeto. Essa interpretação começou nos debates que aconteceram na Câmara. Quando chegou ao Senado, praticamente já estava resolvida a polêmica — destaca.

O juiz titular da Vara de Infância do Distrito Federal, Renato Rodovalho Scussel, que também é presidente da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude (Abraminj), disse que apenas os casos mais graves, considerados maus-tratos, serão levados à Justiça. Segundo ele, o caso isolado de uma palmada será avaliado pelo Conselho Tutelar como medida educativa para os pais.

— Evidentemente, cada caso há de ser avaliado. Mas o próprio limite fundamental é saber que não pode haver violência e maus-tratos — disse.

Mudança de hábito

Para o juiz, a diferença entre uma palmada educativa e os maus-tratos — que dizem respeito ao espancamento da criança ou do adolescente — é uma linha tênue, que vai depender de cada caso.

— Se eu falasse: uma palmada é um ato de violência? Depende. Às vezes, um olhar agride muito mais, uma palavra agride muito mais — completa.

O delegado-adjunto da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Brasília, Rogério Borges, concorda que cada caso é um caso. Mas avisa que é trabalho da polícia investigar suspeitas de maus-tratos, o que já era previsto com punição pelo Código Penal.

Ele faz um alerta aos pais para evitarem o uso do castigo físico na educação dos filhos:

— Nos chegando tais relatos, evidentemente vamos apurar se houve ou não ilícito à legislação, como promover vexame ou constrangimento à criança e ao adolescente. Agora, a gente aconselha aos pais ou responsáveis que passem a adotar uma nova postura, caso tenham como hábito infligir a essas crianças e adolescentes castigo físico, porque, realmente, no novo ordenamento não é mais autorizado aos pais se comportarem dessa maneira — explica Borges.

De acordo com o delegado, se ficar comprovado que o caso não é de maus-tratos, será imediatamente encaminhado ao Conselho Tutelar, que tem a prerrogativa para convocar os pais ou responsáveis e aplicar as medidas protetivas (afastamento do menor, se necessário) e de tratamento e acompanhamento psicoterápico para os tutores.

Márcia Oliveira, da Rede Não Bata, Eduque, lembra que a lei não é punitiva, mas sim educativa, de caráter preventivo com uma indicação para que os pais mudem os hábitos ao criar os filhos.

— Na verdade, a ideia é que a pessoa comece a perceber que essas práticas não são adequadas. A gente não vai aceitar levar um beliscão. Nosso chefe não pode fazer isso com a gente. Por que a gente acredita que pode fazer isso com uma criança, que é muito mais frágil? A intenção é fazer pensar um pouco sobre isso — explica.

A pedagoga Júlia Passarinho também entende que a educação dos filhos deve mudar a partir da Lei Menino Bernardo. Segundo ela, não é mais possível usar métodos antigos, como castigos e humilhação. É preciso entender que o filho não é um objeto, mas um ser humano como o próprio adulto.

— Para você poder respeitar o outro e incluí-lo, sem ser dono dele — é uma ilusão de pai achar que é dono de seus filhos; como é do professor achar que é capaz de educar sozinho, isso não existe também —, tem que ser uma parceria mesmo. A coisa começa na família — argumenta a pedagoga.

A senadora Ana Rita disse que, para implementar essa mudança, será vital a parceria de governos municipais e estaduais. Ela destaca a importância de criar uma rede que atenda os pais que tiverem dúvidas.

— É importante os educadores se apropriarem dessa legislação. As reuniões com pais nas escolas podem ser um espaço de repasse dessas informações, de esclarecimento dos pais sobre a importância da legislação. Mais importante que isso é os municípios e os governos dos estados se prepararem também, oferecendo serviços necessários para que os pais que ainda dependam de uma orientação sobre como educar os filhos possam encontrar profissionais preparados para orientá-los adequadamente. Porque uma coisa é o que diz a legislação, outra coisa é a garantia de que a legislação possa ser implementada de fato e que ela possa surtir o efeito esperado — conclui.

Despreparo

Para que a lei seja cumprida, é preciso fortalecer os Conselhos Tutelares. O juiz Renato Rodovalho Scussel alerta para a falta de capacitação dos conselhos no atendimento dos casos.

— Nós podemos dizer, com toda certeza, que, apesar dos pesares, dos avanços que nós já tivemos com os conselheiros tutelares, ainda falta capacitação, falta formação para esses operadores do direito. Tanto que a lei estabelece também, alterando o artigo 70 do ECA, acrescentando alguns incisos, que o Estado e a União, com os municípios, articularão campanhas, justamente, para capacitação e formação dos operadores — destaca Scussel.

Em Brasília existem 40 conselhos tutelares sob responsabilidade do governo do Distrito Federal. O Conselho Tutelar da Asa Sul é um exemplo.

O conselheiro Victor Nunes faz parte da equipe, que conta com cinco conselheiros, e garantiu que nenhum caso da Lei Menino Bernardo foi registrado até o momento. Informou, porém, que, dos 43 casos recebidos até julho deste ano, pelo menos de 10% a 15% eram sobre maus-tratos.

— O que ocorre no conselho, na verdade, é que, embebido na nova legislação, a gente ­consegue perceber que, em algumas situações que antes a gente não percebia, podem ser aplicadas medidas de proteção que a gente não aplicava, em face de não conseguir caracterizar. Isso porque a lei hoje é bem explícita. Então, tem que cumprir o que está estabelecido em lei. Se a lei foi sancionada no dia 26 de junho, ele [conselheiro] tem que, a partir do dia 27, cumprir. Só que, às vezes, ele não teve acesso à informação — alerta Nunes.

A Secretaria de Estado da Criança do Distrito Federal, por meio da assessoria de imprensa, disse que em julho promoveu uma semana em comemoração ao 24º aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente. E, em parceria com o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do DF, também publicou uma edição atualizada do estatuto, já com os artigos da Lei Menino Bernardo, que foi distribuída para todos os conselheiros tutelares.


Violência gera violência

A coordenadora da Rede Não Bata, Eduque, Márcia Oliveira, explica que o comportamento violento na infância é a causa de uma sociedade mais ­violenta.

— A gente vê nas pesquisas que a violência é um comportamento aprendido. Então, a criança passa a usar essa forma de se comunicar e ela acaba usando a violência para ­resolver conflitos e diferenças em outros ambientes — ­destaca Márcia.

O consultor de direitos humanos e cidadania do Senado Felipe Basile trabalhou na ­elaboração de uma nota técnica sobre a Lei Menino Bernardo:

— A violência sofrida na infância é um dos principais fatores para prever problemas como baixo rendimento escolar, desemprego no futuro, repetição da violência doméstica quando formar a própria família e até mesmo doenças como alcoolismo, depressão e abuso de drogas. A palmada vai gerar uma série de consequências na criança. Estatisticamente, de modo geral, ela predispõe a criança a enfrentar uma série de problemas que ninguém deseja para os filhos — afirma Basile.


Mas se não vou bater, quais são minhas opções?

Um dos questionamentos dos pais em relação a bater ou não em uma criança que faz birra é sobre como dizer “não” e se impor. Segundo a pedagoga Júlia Passarinho, do Instituto Natural de Desenvolvimento Infantil (Indi) em Brasília, o diálogo é a chave para essa mudança.

— Ouvir o outro é uma necessidade básica do ser humano em qualquer momento da vida. Principalmente a criança, que está no seu despertar como ser. Está se construindo como sujeito — argumenta.

Outras ações como não perder a paciência, pensar antes de agir, fortalecer a inter-relação com os filhos, saber ouvir e ter amorosidade, aceitar os próprios limites e falar que ama o filho são dicas importantes para estabelecer um contato mais próximo, segundo a pedagoga.

— Uma das coisas mais difíceis para os pais é lidar com o “não”. O “não” saudável, o “não” estruturante, que é o limite importantíssimo para a saúde mental de qualquer ser humano — ­afirma Júlia.

 

 

Mães falam sobre os filhos e a nova lei

Ana Paula

Ana Paula, 42 anos, é estudante de pedagogia e tem duas filhas. Uma tem 3 anos de idade, a outra, 10. Ela é a favor da Lei Menino Bernardo e conta que, em casa, ela e o marido decidiram educar as meninas com diálogo. Segundo ela, nunca foi necessário bater em nenhuma das duas.

— Lógico que já tivemos oportunidades para uma repreensão, mas nunca numa atuação física — conta.

Ana Paula lembra que é mais trabalhoso, mas sempre tem um resultado melhor.

— Eu li uma vez uma frase de um livro chamado A Autoestima do seu filho que dizia: se você trata seus amigos como você trata seu filho, será que você ainda teria esses amigos? É muito forte, né? — disse.

 

Viviane

A estilista tem 39 anos e uma filha de 4 anos. Para ela, os pais não devem usar a violência, mas, às vezes, é preciso conter a criança. Ela teme o julgamento da sociedade contra os pais, a partir da nova lei.

— O problema é o excesso e como as pessoas apontam o dedo para esse “tapinha”. Porque, às vezes, não é um tapinha, é você pegar a criança de uma maneira mais forte, para que ela se acalme. Com a criação da lei, houve uma coisa de as pessoas apontarem e saírem julgando se aquilo é ou não é uma violência. Eu sou contra a violência física. Mas você pegar, segurar para poder conversar, acalmar, é importante — argumenta a mãe.

Maria (nome fictício)

Maria, 32 anos, cabeleireira, prefere não se identificar. Mãe de uma adolescente de 14 anos e de um menino de 5 anos, ela bateu na filha porque a menina teria dado um tapinha no irmão menor. O acúmulo de responsabilidades e afazeres do dia a dia a fizeram perder o controle. O caso foi levado ao Conselho Tutelar da Asa Sul e é um exemplo extremo do uso dos castigos físicos para educar os filhos.

— Eu dei uma chinelada e, quando comecei a bater, ela começou a gritar e isso me irritou. Daí eu disse: eu nem bati direito e você já está gritando? Comecei a bater, bater e bater. Meu marido veio e me tirou de cima dela. Descontrolei, fiquei descontrolada — assume, arrependida.

Desde o acontecimento, ela faz tratamento psiquiátrico, toma remédios e espera recuperar a guarda da filha.


Fonte: Notícias Senado, 11 de novembro de 2014.

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