Em mais de 80% dos casos a
violência é praticada contra meninas
“Eu parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas
menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa
comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso
entrar na sua casa?’ Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas sábado de manhã se
arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos
se arrumando no sábado para que? Ganhar a vida”.
Esse é um trecho
da fala do presidente da República e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL)
durante uma entrevista ao canal do YouTube Paparazzo Rubro-Negro no dia
14 de outubro. O tema da exploração e violência sexual de crianças e
adolescentes tem um custo alto para a sociedade brasileira que não consegue
garantir a proteção necessária para um desenvolvimento seguro de meninas e
meninos durante a infância e adolescência.
De acordo com os
dados do “Panorama da violência letal e sexual
contra crianças e adolescentes no Brasil”, produzido
pelo Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2017 e 2020, foram
registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de
até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos
representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos, ou seja, um terço do total.
A maioria das
vítimas são meninas, que representam quase 80% dos casos. Na maior parte das
vezes, elas têm entre 10 e 14 anos, sendo 13 anos a idade mais frequente.
Impacto
Diante deste cenário, falas de autoridades
públicas que prezam pela espetacularização e erotização de um tema
doloroso para muitas famílias, reforçam estereótipos e
contribuem para o fortalecimento da cultura do estupro.
Na avaliação de
profissionais da saúde que atuam no atendimento a vítimas de violência sexual e
também de lideranças religiosas que zelam pela garantia do bem-estar de
crianças e adolescentes, a declaração do presidente da República contribui para
"sexualizar" os corpos de meninas, indo na contramão do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e dos próprios ensinamentos de Jesus Cristo que
sempre colocaram as crianças em lugar de cuidado e proteção.
“Esse discurso de
falar desse jeito, tão claramente, reforça muito a lógica de que as meninas
negras e imigrantes se desenvolvem sexualmente mais rápido. É como se
imputassem a elas uma malícia muito grande. E ele [ Bolsonaro] usa esse
discurso ao falar delas, ‘estavam bonitinhas’, joga nas meninas uma projeção da
malícia dele sobre os corpos delas. Isso tem sido brutal para quem acompanha
casos de violência”, explica Cida Alves, psicóloga da Gerência de Vigilância
das Violências e Acidentes da Secretaria Municipal de Goiânia.
Leia mais: A cada 45 minutos uma criança ou um
adolescente é estuprado no estado Rio, segundo levantamento
Um pastor da
Igreja Metodista que prefere não se identificar, avalia que o uso
político-partidário afasta a população do debate sério realizado por
universidades e organizações não governamentais (ONGs).
“Essas últimas
falas de autoridades, ao meu ver, prejudicam muito mais do que ajudam, a gente
precisa entender que a violência contra a criança é seríssima no Brasil. Não é
com piada e brincadeiras, com alarmismo que vamos cuidar disso. Vamos cuidar
disso com estudo sério. Temos várias ONGs que estudam a questão da violência
[sexual] contra a criança há muitos anos, que têm propostas, metodologia, mas
infelizmente virou um caso para eleição, político-partidária, é lamentável”,
afirma o líder religioso e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e dos Adolescentes.
Exploração x Abuso
sexual
E qual a diferença
entre a exploração sexual de crianças e adolescentes, citada pelo presidente, e
abuso sexual contra o mesmo grupo? Alves, que também integra a Rede Não
Bata, Eduque explicou ao Brasil de Fato que
a principal distinção está no pagamento em dinheiro ou outro benefício.
Leia mais: "Bolsonaro é o oposto da pregação de
Jesus", afirmam jovens evangélicos no Papo na Laje
"No caso da
exploração, a criança sofre as violências sexuais, mas normalmente é
interpretada no sentido de ter um ganho financeiro. Então, as crianças são
usadas as vezes por familiares ou por redes de exploração que exploram
elas sexualmente pra ter um ganho. Essa é uma situação muito crítica,
muito difícil porque implica em rede de tráfico de pessoas, cárcere privado e
todas as espécies do sofrimento tanto psicológicos, quanto físicos”,
detalha a profissional que complementa:
“As violências
sexuais acontecem porque uma pessoa ou mais buscam ter o ganho direto, o ganho
sexual com o corpo da criança. Infelizmente, a maioria das crianças sofre
violências sexuais por pessoas muito próximas que querem usar o corpo dela como
uma fonte de prazer. As mais comuns são essas práticas que acontecem dentro de
casa, nem sempre com penetração, normalmente, com manipulação. Inclusive, os
adultos fazem de uma forma que não deixam marca nenhuma. A criança pode ser
também vítima de violência por exposição de imagens”, conclui.
Acolher e Proteger
Diante de um
cenário alarmante e que, na maioria das vezes, o agressor é um familiar ou
alguém próximo à vítima, como a sociedade e, principalmente as comunidades
religiosas, devem agir?
Para o pastor
metodista, a igreja deve ter compromisso com os ensinamentos de Cristo e estar
sempre ao lado da criança. “A igreja deve atuar acolhendo a criança
que, porventura, tenha sofrido algum tipo de abuso e violência e também na
denúncia no Conselho Tutelar, de maneira que essa situação não se repita e que
esse ciclo de violência seja rompido. É muito importante acolher e apoiar a
criança que é vítima, mas dependendo do caso, devemos denunciar para os órgãos
competentes”, salienta o pastor que afirma ainda o cuidado que a igreja deve
ter na seleção dos adultos que realizam atividades com as crianças na
comunidade religiosa.
Leia mais: Investimentos em proteção à infância
e adolescência despencam no governo Bolsonaro
Por sua vez, Alves
destaca que a religião tem um papel importante, principalmente no acolhimento
da vítima, mas que os casos precisam de acompanhamento de profissionais da
saúde. Segundo a psicóloga, estudos mostram que vítimas de violência sexual
podem chegar a ter o mesmo nível de trauma de vítimas de guerra.
“Se a pessoa não é
acompanhada, ela vai ter dificuldades a vida inteira. Porque mexe não só no
aspecto emocional, mas comportamental. Então, o que é mais importante é que a
fé, a religiosidade é um fator protetivo para a saúde mental desde que ela não
faça uma concorrência com o tratamento em saúde, o tratamento psicoterápico e
em alguns casos, o tratamento medicamentoso”, diz a terapeuta.
Como denunciar?
Em caso de
suspeita de situação de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes,
as denúncias podem ser feitas para os seguintes órgãos: Disque 100:
a denúncia é anônima e pode ser feita por qualquer pessoa; Polícia
Miliar - 190: quando a criança está correndo risco imediato; Delegacias especializadas
no atendimento de crianças ou de mulheres; Conselhos Tutelares; WhatsApp
do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008 e
Ministérios Públicos.
Edição: Mariana Pitasse
Fonte: Brasil de Fato, 19 de outubro de 2022.
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