4.mar.2022 - Refugiados esperam em uma longa fila para embarcar em um trem para a Polônia na estação central de trem de Lviv
Imagem: Daniel LEAL / AFP
Confesso que não conhecia seu nome, e nem sua
denominação de guerra. Mas os áudios indigestos que vazaram com seus
comentários sobre a situação na Ucrânia me obrigaram a escrever aqui algumas
linhas sobre o que eu vi em campos de refugiados e filas de pessoas
desesperadas para escapar da guerra e da pobreza ao longo de duas décadas.
Não estou acusando o senhor e sua comitiva do
que estará exposto abaixo. Mas considero que, sem entender essa dimensão do
sofrimento humano, fica impossível justificar uma viagem como a que o senhor
faz para ajudar a defender um povo.
Ao longo da história, a violência sexual é
uma das armas de guerra mais recorrentes para desmoralizar uma sociedade. Ela
não tem religião, nem raça. Ela destrói. Demonstra o poder sobre o destino não
apenas das vidas, mas também dos corpos e almas.
Percorrendo campos de refugiados em três
continentes, o que sempre mais me impressionou foi a vulnerabilidade das
mulheres nessa situação.
Mas, antes, vamos ser claros aqui. Não
precisamos sair do Brasil para saber que as mulheres, simplesmente por serem
mulheres, precisam passar a vida se explicando. Como se necessitassem de
chancela ou justificativa para determinar o destino de seu corpo ou coração, se
podem trabalhar ou ter tesão. Intolerável, não?
Então, o senhor pode imaginar o que isso
significa em tempos de guerra, onde a lei e a moral são suspensas?
Conheci certa vez uma garota yazidi. Ela me
contou como, depois de sua cidade ser tomada por islamistas, ela foi
transformada em escrava sexual. Aqueles olhos verdes intensos se enchiam de
lágrimas quando contava que, num calabouço, ela e as demais meninas se dividiam
em dois grupos.
Aquelas que rezavam para sobreviver e aquelas
que rezavam para morrer logo.
Ela também me contou que, num ato de
solidariedade com as outras mulheres que viriam depois delas, foi iniciado um
gesto espontâneo de escrever mensagens nas paredes daqueles quartos imundos,
inclusive com dicas de como agir. Escreviam com a única cor que tinham. O
vermelho do sangue de suas vaginas estupradas.
O senhor me diria: claro, isso é coisa de
terrorista islâmico. Sim, sem dúvida. Mas quero lhe contar o que investigações
e auditorias revelaram em um local mais próximo de nós: o Haiti.
Ali e em outros locais onde estão destacadas,
as tropas de paz da ONU - repletas de moral, credibilidade e protocolos - foram
acusadas de estupro e de abusos com mulheres, meninas e meninos. Alguns, em
troca de comida. Num caso específico, um garoto era semanalmente estuprado por
oficiais, em troca de bolachas. Há até mesmo uma categoria de crianças hoje
nesses países, "os filhos da ONU".
Na Sérvia, num barracão onde eram depositados
os refugiados que aguardavam para chegar até a Europa Ocidental, conheci uma
mulher que não falava. Sua irmã, depois, veio me explicar que ela ficou muda
depois de ter sido estuprada pelo "guia" que seus pais tinham
contratado na Turquia para que elas cruzassem as fronteiras. Para pagar pelo
guia, os pais venderam as únicas coisas que tinham: uma casinha e dois animais.
Em Dadaab, no Quênia, entendi toda a minha
ignorância quando fui perguntar para um grupo de crianças do que elas tinham
mais medo. Achei que a resposta seria: as bombas de Mogadíscio. Mas era do
escuro do campo de refugiados. Quando pedi para saber o motivo, uma delas
sussurrou: "não podemos nem ir ao banheiro pela noite. Um homem pode fazer
coisas ruins com nosso corpo".
Anos depois, voltei a viajar para a África.
Da janela do avião a hélice em que eu voava, podia ver como um garoto usava um
pedaço de galho para tentar dirigir o destino de vacas e outros animais. Enquanto
ele conseguia dar direção ao gado, algumas reses escapavam um pouco adiante.
Do assento em que eu estava, quase não
consegui ouvir quando o piloto se virou para trás e, competindo com o barulho
do motor, gritou que estávamos iniciando a aterrissagem. Jamais imaginaria que,
minutos depois, era sobre aquele local de terra de onde o garoto estava
retirando os animais que o avião iria pousar. O que de fato eu tinha visto era
a preparação da pista de pouso.
Eu tinha viajado para um lugar a oeste da
cidade de Bagamoyo, na Tanzânia, para escrever sobre o impacto da Aids numa das
regiões mais pobres do planeta. Mas seria naquele local que eu descobriria, de
uma maneira inusitada, a dimensão do drama de imigrantes e refugiados. Ao longo
dos anos, visitei campos de refugiados na fronteira do Iraque, entre o Quênia e
a Somália, em Darfur, na rota entre a Turquia e a Europa. Vi milhares de
pessoas sem destino. Mas, nas proximidades de Bagamoyo, aquela história era
diferente. Oficialmente, não havia uma guerra. Não havia um acampamento de
refugiados. Mas eu logo descobriria que nem por isso o desespero deixava de
estar presente naquela população.
Eu fazia uma visita a um hospital e esperava
para falar com o diretor. Por falta de médicos, ele fora chamado para fazer um
parto. Sabia que aquilo significava que eu passaria horas ali, à espera de
minha entrevista. Restava fazer o que eu mais gostava nessas viagens: descobrir
quem estava ali, falar com as pessoas, perambular pelo local, ler os cartazes e
simplesmente observar. No portão do centro de atendimento, centenas de mulheres
com seus véus coloridos aguardavam de forma paciente. Tentavam afastar as
moscas, num calor intenso, enquanto o choro de crianças rompia os muros
descascados daquela entrada de um galpão transformado em sala de espera.
Ao caminhar para uma das alas, fui barrado.
Os enfermeiros me pediram que não entrasse no local. Quando perguntei qual era
a especialidade daquela área, disseram que não podiam revelar. Em partes da
África, o preconceito e o estigma em relação aos elação aos pacientes de Aids
obrigam os hospitais a não indicar nem em suas paredes o nome da doença. Decidi
sair do prédio em ruínas e, num dos pátios do hospital, vi duas garotas
brincando.
Não tinham mais de 10 anos de idade. E o
único momento em que olharam para o chão, sem resposta, foi quando perguntei o
que faziam ali. Mas a curiosidade delas em saber o que um rapaz branco, com um
bloco de notas na mão e uma câmera fotográfica, fazia lá era maior que sua
vontade de contar histórias. Desisti de seguir com minhas perguntas. Expliquei
que era jornalista brasileiro e, para dizer meu nome, mostrei um cartão de
visita, que acabou ficando com elas.
Quando iam responder à minha pergunta sobre
os seus nomes, nossa conversa foi interrompida por uma senhora que, da porta do
hospital, me avisava que o diretor já estava à disposição para a entrevista.
Deixei aquelas crianças depois de menos de cinco minutos de conversa. Já
caminhando, virei e disse uma das poucas expressões que tinha aprendido em
suaíli: kwaheri - "adeus". Ganhei em troca dois enormes sorrisos.
Terminada a entrevista com o diretor do
hospital, confesso que nem sequer notei se as meninas continuavam ou não no
pátio. Estava ainda sob o choque de um pedido do gerente da clínica, que, ao
terminar de me explicar o que faziam, me perguntou se eu não poderia deixar
para eles qualquer comprimido que tivesse na mala. Qualquer um. Até mesmo se o
prazo de validade já tivesse expirado.
Alguns meses depois, já na Suíça, abri minha
caixa de correio de forma despretensiosa ao chegar em casa. Num envelope
surrado e escrito à mão, chegava uma carta de Bagamoyo.
Pensei comigo: deve ser um erro e a carta
deve ter sido colocada na minha caixa por engano. Eu não conheço ninguém em
Bagamoyo. Mas o envelope deixava muito claro: era para Jamil Chade.
Antes mesmo de entrar em casa, deixei minha
sacola no chão e abri o envelope. Uma vez mais, meu nome estava no papel, com
uma letra visivelmente infantil. Eu continuava sem entender. Até que comecei a
ler. No texto, em inglês, quem escrevia explicava que tinha me conhecido diante
do hospital e que tinha meu endereço em Genebra por conta de um cartão que eu
lhe havia deixado.
Como num sonho, as imagens daquelas garotas
imediatamente apareceram em minha mente. Mas o conteúdo daquela carta era um
verdadeiro pesadelo. A garota me escrevia com um apelo comovedor. "Por
favor, case-se comigo e me tire daqui. Prometo que vou cuidar de você, limpar
sua casa e sou muito boa cozinheira." A carta contava que sua mãe havia
morrido de Aids - naquele mesmo hospital - e que seu pai também estava morto.
Cada um dos oito filhos fora buscar formas de
sobreviver e ela era a última da família a ter permanecido na empobrecida
cidade. "Preciso sair daqui", escrevia a garota. A cada tantas
frases, uma promessa se repetia: "Eu vou te amar."
Uma observação no final parecia mais um
atestado de morte: "Com as últimas moedas que eu tinha, comprei este
envelope, este papel e este selo. Você é minha última esperança."
Deputado, talvez o senhor classificaria essa
pessoa no grupo de "meninas fáceis". Eu, porém, chorei de desespero e
de impotência diante daquele pedido de resgate.
Eu e o senhor- homens brancos - nascemos como
a classe mais privilegiada do planeta. Eu e o senhor não tivemos de fazer nada
para adquirir esses privilégios. Existimos.
É nossa obrigação, portanto, desmontar o
processo de profunda desumanização de uma guerra e da miséria. Cada um com suas
armas.
Não sei qual será o destino que a Assembleia
Legislativa em São Paulo, seu partido e seus eleitores darão ao senhor.
Qualquer que seja ele, só espero que esse episódio revoltante sirva para que
haja alguma insurreição de consciências sobre a condição feminina. Na guerra e
na paz.
Grato pela atenção
Jamil
Fonte: Uol, em 5 de março de 2022.
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