28 de mai. de 2021

"Violências Sexuais se enfrentam com CIÊNCIA, POLÍTICAS PÚBLICAS E CORAGEM" - Live de encerramento do 18 de maio - Goiânia/Goiás 2021

Temas da Roda de Conversa: 

ü Integralidade da atenção em saúde às vítimas de violências sexuais

ü Educação sexual nas Escolas

ü Educação para Igualdade de Gênero


31 de maio

10h00 as 11h30

Youtube Oficial da UFG

https://www.youtube.com/channel/UCVEN3bSdTJsYvDM0JfqerYA


Painelistas confirmados





Olímpio Barbosa de Moraes Filho

Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, gestor executivo do CISAM-UPE, médico tocoginecologista, diretor da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia e conselheiro do CRM-PE.

 





Ricardo de Castro e Silva

Psicólogo psicodramatista mestre e doutor em Educação, fundador e coordenador pedagógico da Taba-espaço de vivencia e convivência do Adolescente, realizador de vários programas sobre sexualidade nas adolescências e autor do livro Orientação Sexual, Possibilidade de Mudança na EscolaCampinas SP: Mercado de Letras, 2002. Coleção Dimensões da Sexualidade.





Denise Carreira

 

Educadora popular, mestre e doutora em educação pela Universidade de São Paulo e professora de políticas educacionais da Faculdade de Educação da USP. Feminista antirracista e ativista de direitos humanos há mais de trinta anos, trabalha pela promoção da igualdade de gênero e raça nas escolas e nas redes educacionais do país. Desde 2018, está entre as brasileiras que integram a Rede Gulmakai do Fundo Malala. Denise é membro da coordenação da organização Ação Educativa, foi coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e coordena a Coalizão Direitos Valem Mais, uma mobilização nacional pela revogação do Teto de Gastos (EC95), que limitou recursos da educação pública e de outras políticas sociais, inviabilizando o Plano Nacional de Educação.


Promoção:

Fórum Goiano de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes;

Rede de Atenção à Crianças, Adolescentes e Mulheres em Situação de Violência de Goiânia; e

Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia.

Parceria: Universidade Federal de Goiás


24 de mai. de 2021

Revogação da Lei de Alienação Parental - Audiência Pública Virtual da Assembleia Legislativa de Goiás



 

Expositoras Confirmadas:

Adriana Accorsi – Delegada Deputada Estadual (PT GOIÁS) segundo mandato 

Marília Valença Rocha Arraes - Deputada Federal (PT PERNAMBUCO) Coordenadora do Grupo de Trabalho que pede a Revogação da Lei de Alienação Parental 

Ana Maria Iancarelli - psicanalista de criança e adolescentes-Presidente da ONG Vozes de Anjos -Rio de Janeiro

Valéria Diez Scarance Fernandes - Promotora de Justiça de São Paulo 

Michelle Bitta Alencar de Sousa - Defensora Pública de Brasília-DF

Sibele de Lima Lemos - Coletivo Voz Materna -RS

Cida Alves - Doutora em Educação pela UFG e Psicóloga da Gerência de Vigilância das Violências e Acidentes da SMGOIÂNIA

Aava Santiago - Socióloga-vereadora (PSDB GOIÂNIA)

Rosilei Galhardo de Sá - Pedagoga - Presidente do Conselho Tutelar Região Centro Sul



Conferência de abertura do Seminário: “Lei da Alienação Parental: (des)proteção de crianças?”  realizada por de Maria Clara Sottomayor – Magistrada de Portugal. Programação expandida do 18 de maio 2019 - Dia Nacional de Enfrentamento às Violências Sexuais Contra Crianças e Adolescentes – Goiânia/Goiás



22 de mai. de 2021

El Viaje - El libro de los abrazos de Eduardo Galeano



A Viagem

Oriol Vall,

Que cuida de recém nascidos
Em um hospital em Barcelona
Diz que o primeiro gesto humano é o abraço
Depois de chegar ao mundo
Nos primeiros dias
Os bebês manoteiam

Como se buscassem alguém

Outros médicos
Que se ocupam dos já vividos
Dizem que os velhos
Ao fim de seus dias
Morrem querendo alçar os braços

E assim é a coisa
Por mais voltas que demos ao assunto
Por mais palavras que coloquemos
A isso, assim de simples
Se reduz tudo
Entre a agitação
Sem mais explicação
Transcorre a viagem

Eduardo Galeano







 

16 de mai. de 2021

Rainha Negra - Aldir Blanc e Moacyr Luz

 

Rainha Negra

“A idade da sereia
O baticum de pé no chão
Chuá de cachoeira
O mito, o rito ritmam a respiração
Tantan e atabaque
A gargalha do ganzá
O canto de trabalho
A dança, a ânsia sagrada de rememorar

O escuro do negreiro
O açoite pardo do feitor
E um clarão enganador
A liberdade sonhada ainda não chegou...”

Aldir Blanc e Moacyr Luz









Foto: Victor Pollak  

“Nzinga, a rainha combatente

Nascida em 1582, em Angola, Nzinga Mbandi, interpretada por Heloisa Jorge, foi a rainha do Reino do Dongo e Matamba. Ainda criança, ela foi treinada para o combate e, na vida adulta, comandou um exército até os seus 73 anos de idade. Além de uma grande líder militar e política, lutou contra a colonização e a comercialização de escravos praticadas pelos portugueses.”

Falas negras de Lázaro Ramos


7 de mai. de 2021

"Hay que atreverse a ser niño": así fue la última clase de Humberto Maturana el sábado recién pasado - Emilio Contreras, BioBioChile






 


Por Emilio Contreras


“Educación: Transformación a través de la convivencia y el mundo emocional”, se tituló la última clase que Humberto Maturana y Ximena Dávila, los fundadores del centro de estudios Matríztica, ofrecieron en conjunto a una comunidad estudiantil antes del fallecimiento del biólogo nacional a los 92 años.

Ocurrió en el marco del “Máster Internacional en Educación Emocional y Neurociencias Aplicadas” de la Fundación Liderazgo Chile, dedicada a la “promoción del aprendizaje para el desarrollo de habilidades socioemocionales y la construcción de relaciones justas, conscientes e integrales”.

La actividad se desarrolló el sábado 1 de mayo, duró dos horas y contó con 250 alumnos inscritos de Chile y Latinoamérica. Uno de ellos fue Arnaldo Canales, director ejecutivo de la ONG.

“Nosotros trabajamos con todo lo que es la educación emocional… En esa clase, lo que buscábamos era abrir un espacio donde se abordara la educación enfocada al buen vivir a través de la convivencia”, contó a BioBioChile.

“Lo que habíamos hablado, era que (Maturana) nos pudiera traspasar un poco, desde la mirada de la conversación, cómo aportar a la convivencia tanto escolar como social”, agrega.

La trastienda de la actividad, asegura, fue fruto de meses de gestión. En enero se produjo la invitación formal hacia Matríztica, a la que Maturana y Dávila accedieron sin problemas. “Hubo puntos de acuerdo. Nosotros sabíamos que Maturana tenía 92 años, y queríamos ser cautos y responsables con no forzar una actividad que le generara complicaciones”.

En registros de la clase a los que BioBioChile tuvo acceso, se puede escuchar el rechazo del biólogo al rótulo de “experto” (tantas veces referido a él), y en vez de ello, su autodefinición como un “niño crecido”: “(Significa) estar dispuesto a preguntar, a alegrarse, a tener curiosidad, a jugar. Y jugar, es hacer las cosas con dedicación en el instante en que las hace, sin estar pensando en los resultados”.

“Para no estar atrapado, hay que atreverse a ser niños: estar dispuestos a preguntarnos: ¿será lo que yo digo que sé, lo que sé?”, añade más adelante.

Canales recuerda con emoción el encuentro: “Era la primera vez que él estaba con nosotros, y fue un honor. Después de la clase yo le dije a todo el equipo que con tiempo y templanza, y a medida que pasen los años, nos íbamos a dar cuenta de la maravillosa clase en la que habíamos estado”.

“Era muy ceremonial, había un silencio a pesar que era una clase online; todos con las cámaras prendidas. Era un conversación, una reflexión”, define el director.

La idea de la fundación, a corto plazo, es utilizar dicho material para un webinar que pretenden compartir con la ciudadanía en un formato aún por definir.

“‘Sin desarrollo humano, no podemos pretender tener evolución social’. Ellos, Maturana y Dávila, partieron la charla tomando esa reflexión porque efectivamente también sienten, al igual que nosotros, que debe haber un desarrollo humano, una mirada desde lo social y una construcción de una educación que contribuya al mundo a generar personas de bien, y no sólo trabajadores”, agrega.

Otra de las ideas que Maturana abordó en la charla, fue la del cambio de opinión; cualidad que definió como fundamental en el ser humano.

“Nos decía: tenemos que estar dispuestos a cambiar de opinión, porque tenemos esa capacidad de hacerlo. También que nos invitaba a nosotros mismos a mirarnos mejor; hacia adentro. Porque si reflexionamos sobre lo que pensamos, o sobre la posición que tiene otra persona, podemos verlo no como una verdad absoluta. Y si es así, podemos cambiar la mirada y tener validez en lo que estamos diciendo”, recuerda Canales.

BioBioChile



REFLEXÕES SOBRE O CASO HENRI - Maysa Balduino



"Sofrer e cuidar do sofrimento talvez seja o único caminho, a única possibilidade de elaborar barbáries como essa.  Esse mergulho para o nosso interior nos permite entrar em contato com as nossas vivencias mais significativas e verdadeiras e o cuidado de tudo isso traz grande chance de promover uma elaboração suficiente para resgatar a esperança na nossa capacidade e nas relações de cuidado. Num segundo momento, poderemos oferecer isso em casa, no trabalho, no encontro com um amigo, no cuidado com os nossos filhos. Ser continente para esse menino Henri, tão vulnerável, que habita todos nós, é como o alivio da volta à superfície no reencontro com um porto seguro."

Maysa Balduino              



 

 Nas últimas semanas, fomos atravessados pela terrível notícia da morte do menino Henry, mais uma vítima de violência doméstica. Para muitos, acompanhar o noticiário desse caso é impossível. Outros já se envolvem com as notícias e buscam ativamente mais e mais informações sobre o caso. Algumas pessoas se informam e ficam muito mobilizadas. Ouvi adultos relatarem ter sintomas físicos diante das notícias: “tenho vontade de vomitar”.

Para a minha surpresa, vômito era um sintoma que o menino apresentava na presença do padrasto, segundo mensagens da mãe divulgadas pela imprensa. Podemos pensar que a incapacidade do menino Henri de processar e digerir a violência sofrida resultava na ânsia de vômito. Era uma comunicação do seu pavor e sofrimento. Não é diferente da ânsia que muitos de nós sentimos diante da barbárie que é uma criança ser espancada até a morte.

O resultado dessa violência brutal nos comove tanto que nos identificamos com Henry. Nossa impotência diante do caso é tão grande quanto a dele, pequeno e incapaz de se defender e preservar a sua própria vida. Essa identificação com o menino Henry nos empurra a um estado de intensa angústia e perturbação porque nos faz rememorar as necessidades da criança que fomos. Necessidades de acolhimento, de cuidado, de amor.

Às vezes, na tentativa de aplacar nossa ansiedade e alcançar um entendimento, nos embrenhamos na busca frenética por mais e mais informações. Por não encontrarmos justificativas para tanta crueldade, embarcamos em uma cruzada por justiça ou ficamos sedentos de vingança, ansiando a destruição dos responsáveis. Nossa mente, procura entender, elaborar, acomodar o destino dramático do pequeno Henry. São tentativas legitimas, mas geralmente infrutíferas. A impotência e a incompreensão prevalecem, a angústia não se dissipa.

Para superar essa agonia, me ocorre uma possibilidade, que a psicanálise me ajuda a formular: trata-se de poder contar com o adulto que cuida e que vive dentro de nós. Nosso mundo interno abriga ao mesmo tempo uma criança e um adulto. Um adulto supostamente capaz de acolher o sofrimento, de cuidar das feridas, consolar a criança desesperada que também vive ali.

Quando esse acolhimento é possível (pois sabemos que nem sempre o é), quando o adulto tem condições de cumprir essa função consigo mesmo, de cuidar da sua criança aflita, ele pode superar o que antes parecia impossível. Evocar o adulto que cuida dentro de nós não impede a dor, mas auxilia a pensar, a cuidar e proteger.

Sofrer e cuidar do sofrimento talvez seja o único caminho, a única possibilidade de elaborar barbáries como essa.  Esse mergulho para o nosso interior nos permite entrar em contato com as nossas vivencias mais significativas e verdadeiras e o cuidado de tudo isso traz grande chance de promover uma elaboração suficiente para resgatar a esperança na nossa capacidade e nas relações de cuidado. Num segundo momento, poderemos oferecer isso em casa, no trabalho, no encontro com um amigo, no cuidado com os nossos filhos. Ser continente para esse menino Henri, tão vulnerável, que habita todos nós, é como o alivio da volta à superfície no reencontro com um porto seguro.








Maysa Balduino
 - psicanalista, membro do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Goiânia.

6 de mai. de 2021

Maria, preciso te contar sobre Bolsonaro, o fazedor de órfãos - Eliane Brum, El País

 
Lilo Clareto e a pequena Maria, filha caçula de apenas dois anos de idade. — Foto: Acervo pessoal


Uma carta testemunhal do macabro tempo que vivemos!

A leitura será uma experiência dolorosa, todavia necessária. Precisamos enfrentar o que somos e o que permitimos. Sei que enquanto indivíduos, muitos aqui lutaram e lutam com uma coragem insana contra o que Bolsonaro e seus aliados representam! Entretanto, nossa geração terá que enfrentar a culpa coletiva e responder todos os dias pelos atos e omissões que fizeram com que um mundo pior  fosse entregue às futuras gerações!

Cida Alves

___________


O homem que governa o Brasil condenou uma geração a crescer e a viver sem pai ou sem mãe


Por Eliane Brum


Maria, você tem apenas 2 anos. Um, dois. E apenas esses dois anos separam seu nascimento da morte do seu pai. Lilo Clareto morreu em 21 de abril. A causa oficial da certidão de óbito é: “sepse grave, pneumonia associada à ventilação e covid (tardia)”. Mas essa é apenas a verdade parcial sobre a morte do seu pai. Eu olho para você, Maria, e me preparo para a conversa que um dia teremos, aquela em que precisarei contar a você a verdade inteira.

Maria, seu pai foi vítima de extermínio. Seu pai é um dos mais de 410.000 brasileiros que tombaram por um crime contra a humanidade entre os anos de 2020 e 2021. Enquanto eu escrevo essa carta para você, os assassinatos seguem acontecendo a uma média de quase 2.400 cadáveres por dia. Eu olho para você, Maria, e você ainda diz, os olhos escancarados de expectativa, quando alguém faz barulho na porta da frente: “pa!”. E, então, decepcionada: “pa?”.

Não, Maria, seu pai não entrará mais pela porta da casa cantando e com as mãos estendidas para pegar você no colo. Enquanto escrevo essa carta para você, Maria, seu pai virou cinzas. Essas cinzas serão um dia jogadas na boca do Riozinho, lá onde esse rio, só pequeno no nome, encontra o Iriri, na Terra do Meio, na Amazônia.

Sei que mesmo que eu espere até você ficar muito mais velha, Maria, você não será capaz de entender por completo. Você já poderá compreender o pensamento de Davi Kopenawa, Sueli Carneiro e Paul Preciado, mas não terá como compreender o pensamento de um homem que, na maior crise sanitária da história do Brasil, trabalhou para disseminar um vírus que pode matar. E mata.

Não importa a idade que você tenha e os diplomas que acumular, Maria. Ainda assim não haverá como compreender um homem que estimulou as aglomerações quando os médicos pediam que a população ficasse em casa. Um homem que vetou a obrigatoriedade de uso de máscaras quando as populações da maioria dos países do mundo usava máscaras para se proteger da contaminação. Um homem que esbanjou dinheiro público com medicamentos comprovadamente sem eficácia contra uma doença fatal e mentiu para a população que eram eficazes. Um homem que chamou o que matou seu pai e quase meio milhão de brasileiras e brasileiros (até agora) de “gripezinha”. Um homem que recusou as vacinas contra essa doença que converteu você em órfã. Não, Maria, você não poderá entender esse homem em nenhuma circunstância.

Você olhará para mim com seus olhos escuros, suas pupilas negras, em busca de esclarecimento. Eu vou olhar para você e prometo fazer o possível para não baixar os olhos. Porque, Maria, eu não tenho resposta. Muitas teorias já foram feitas sobre genocidas como Adolf Hitler, Pol Pot e Slobodan Milosevic. Eu já li algumas delas. E muitas, tenho certeza, serão feitas sobre Jair Bolsonaro. E também se escreverá muito sobre as brasileiras e brasileiros que o sustentaram no poder. Primeiro com seu voto, depois com sua crença. Assim como tantos filmes e livros foram feitos e escritos sobre os alemães medianos que sustentaram, com sua ação ou omissão, o extermínio de 6 milhões de judeus, homossexuais, ciganos e pessoas com deficiência na Alemanha dos anos 1940. Pessoas que andavam entre nós, que conversavam amenidades na fila do pão e, de repente, olhamos para elas e as descobrimos salivando com a morte. Pediam não mais pão, mas mais armas.

O que é o mal, Maria? Nos debatemos com esse dilema desde sempre. Até viver horrores como esse apenas pelos livros, eu tinha muitas dúvidas sobre nomear o mal. Me parecia simples demais, fácil demais. Mas, hoje, Maria, depois do que tenho testemunhado com meu próprio corpo, preciso dizer que o mal existe. Bolsonaro é o mal, Maria. E Bolsonaro foi engendrado nesse mundo, nessa época histórica, por essa sociedade, por essa conjunção de genes e de acasos, por essas circunstâncias.

Bolsonaro tenta fazer o mal desde que o Brasil sabe de Bolsonaro. Ele era militar do Exército e já planejava colocar bombas nos quartéis. Por interesses de um grupo e de outro, quem deveria barrá-lo não o barrou. E, de impunidade em impunidade, o mal assumiu o poder. E, por isso, seu pai perdeu a vida e você ficou sem pai. Você, Maria, e dezenas de milhares de outras crianças. Quando eu finalmente for capaz de ter essa conversa com você, talvez sejam centenas de milhares de outras filhas e filhos sem pai ou sem mãe. Porque hoje, quando escrevo essa carta para você, Maria, o mal ainda governa o Brasil.

Vou interromper o mal para falar do seu pai. Do contrário, também eu não suporto, Maria. Algumas pessoas, com a melhor das intenções, eu sei, me dizem que era a hora do seu pai, que ele já tinha cumprido sua missão nesse plano. Eu afirmo, com toda convicção: não era a hora de o Lilo morrer. Ao contrário, continuava sendo a hora de o Lilo viver. Seu pai me contava, apenas algumas semanas antes, que apesar de toda a dureza de enfrentar uma pandemia, ele vivia um dos melhores momentos da sua vida. Porque ele vivia apaixonado por sua mãe e porque ele tinha você, Maria. E ele sonhava em ensinar a você tudo o que ele sabia.

Seu pai nem ficou sabendo, Maria, mas enquanto estava em coma induzido no hospital, ele foi aprovado para o curso de Letras na Universidade Federal do Pará. Ele queria mesmo fazer Arqueologia, porque tinha se apaixonado pelo trabalho dos arqueólogos numa expedição que fizemos juntos à Estação Ecológica, na Terra do Meio. Mas não existia essa opção em Altamira. Como seu pai era poeta, das luzes e também das palavras, ele escolheu o curso de Letras. Seu pai sabia dizer por inteiro A Máquina do Mundo, poema de seu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade. E, sempre que dizia, seus olhos boiavam em água salgada. Para o seu pai, a máquina do mundo estava sempre se abrindo como o diafragma da câmera com que ele capturava a realidade como ele a via. Desde que você nasceu, Maria, era a realidade de você que ele convertia em imagem. Você e sua mãe eram, para ele, um mundo só bom.

Não, Maria, não acredite nem por um segundo que era hora de o seu pai morrer. Não era. Seu pai, como centenas de milhares de brasileiros, morreu porque Jair Bolsonaro e seu Governo executaram um plano de disseminação do novo coronavírus para, supostamente, alcançar o que chamam de “imunidade de rebanho”. Sim, Maria, como gado. “Alguns vão morrer, lamento, essa é a vida”, era assim que o presidente do Brasil falava.

O mundo inteiro e todos os epidemiologistas respeitáveis diziam o contrário. Afirmavam que era uma insanidade, além de imoral. Dois ministros da Saúde, médicos, abandonaram o governo por não suportar a ideia de ser cúmplices desse crime. Mas Bolsonaro preferiu acreditar nele mesmo, com sua experiência de quase 30 anos se reelegendo no parlamento sem propor nada de útil, porque supostamente não queria que a “economia” fosse prejudicada e, assim, seu projeto de reeleição.

É isso que a análise de mais de 3.000 normas federais, feitas por um grupo de juristas renomados da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, provou. Na sequência, outros estudos concluindo que uma parcela significativa das mortes por covid-19 teriam sido evitadas se Bolsonaro tivesse combatido a covid-19 foram divulgados em algumas das mais importantes publicações científicas do mundo. Pesquisas internacionais mostraram que o Brasil teve a pior atuação na pandemia entre todos os países do planeta.

No momento em que escrevo essa carta para você, Maria, as ações deliberadas e as omissões deliberadas de Bolsonaro e seu Governo provocaram e seguem provocando dezenas de milhares de mortes evitáveis. Como a do seu pai, Maria. No momento em que escrevo essa carta para você, as ações deliberadas e as omissões deliberadas de Bolsonaro e seu Governo gestaram dezenas de milhares de meninas e meninos órfãos, pequenas e pequenos brasileiros que terão que crescer e viver sem pai ou sem mãe. Como você, Maria.

Eu olho para o seu rosto bochechudo de bebê e penso: como vou explicar a você o porquê de crescer sem pai? Eu olho para você, Maria, com apenas 2 anos, e penso: como vou explicar que sua vida, também materialmente, será enormemente prejudicada porque agora sua mãe terá de te sustentar sozinha? Eu olho para você, Maria, com apenas 2 anos, e penso: quem vai pagar a você, Maria, por aquilo que não tem preço, a perda de um pai? Quem vai pagar a todas as Marias e Clarices e Sthephanhys? Quem vai pagar a todos os Josés e Pedros e Neymares? Quem, Maria?

Antes que você levante seus olhos perfurantes para mim mais uma vez, eu preciso voltar a falar do seu pai. Quando eu o conheci, Maria, ele já era um repórter fotográfico experiente. Tinha trabalhado muitos anos no Estadão e recém desembarcara na Época, a revista onde eu trabalhava. Entre suas tantas fotos notáveis está a de um menino vivendo nas ruas de São Paulo, um menino condenado pela nossa incapacidade de enxergar. A imagem capturada pelo seu pai mostra uma criança pequena, apenas um pouco maior do que você, que desloca a chupeta da boca para dar uma tragada no cigarro. É brutal. A chupeta e o cigarro, lado a lado naquela boca com dentes de leite. A infância que resiste pedindo cuidado, a infância destruída que, sem cuidado, é incinerada com um cigarro.

Penso que só Lilo poderia ter capturado aquele instante. E, também daquela vez, Lilo sofreu com o que para sempre sofreria. O que seu pai denunciava provocava comoção social, discursos, mas a sociedade e o Estado logo se esqueciam. E as crianças do Brasil seguiriam morrendo antes de crescer.

E agora, Maria, agora é você a criança que perdeu o pai. Você e dezenas de milhares de brasileirinhas e brasileirinhos. Eu preciso respirar fundo, eu, que ainda tenho ar. Será que ainda restará oxigênio para mim, Maria, quando chegar a hora dessa nossa conversa, ou também eu serei mais uma vítima de extermínio? Enquanto escrevo essa carta para você nenhuma brasileira, nenhum brasileiro está seguro do dia seguinte. E não estará, até que Bolsonaro seja impedido de seguir executando seu plano de morte.

Mas, sim, eu preciso respirar o ar que ainda resta no país e seguir contando a você sobre o homem que matou seu pai. A análise dos documentos assinados pelo presidente do Brasil, que eu prefiro chamar de antipresidente, assim como suas declarações públicas e assim como os documentos e as declarações públicas de membros do seu Governo, pelo menos um deles general da ativa, mostram a execução de um plano de disseminação para promover imunidade por contágio. É verdade, isso aconteceu, os fatos estão documentados. Mas, ainda assim, Maria, eu preciso dizer a você que me parece faltar pelo menos uma peça.

Nunca conheci ninguém como Bolsonaro. Alguém que parece todo ele o que a psicanálise chama de “pulsão de morte”. Minha experiência de mais de 30 anos entrevistando gentes de todas as formas, inclusive assassinos, estupradores e abusadores, e cobrindo todo o tipo de eventos, me mostra que grandes acontecimentos são produzidos por subjetividades tanto ou mais do que por objetividades. As objetividades são o que permitem a subjetividade de se realizar como ato. Mas a força, a pulsão, ela vem de um lugar menos aparente, menos assumido e menos pronunciado.

Minha hipótese, Maria, é que Bolsonaro gosta de matar. Ele também gosta de assistir ao sofrimento de todos os outros, exceto o de seus filhos, que moldou a sua imagem e semelhança para seguirem seu legado de destruição. Um dia, se você tiver estômago, Maria, posso te mostrar uma série de cenas e declarações do homem que hoje governa o Brasil nas quais ele deixa explícito seu gozo com a dor alheia. Algumas vezes, ele até mesmo ri quando se refere aos mortos da pandemia.

O mais fácil, Maria, é achar que isso é loucura, como se a loucura pudesse explicar esse gosto por morte. Não é loucura, Maria. Bolsonaro gosta de matar, gosta de infligir sofrimento e de assistir ao sofrimento, gosta de ver o sangue dos outros correr. Ele gosta. E, infelizmente, Maria, não está sozinho nesse gosto. Seus apoiadores na Amazônia, Maria, onde ambas vivemos, tem essa mesma ânsia. Assim como Bolsonaro planejou explodir bombas nos quartéis, eles planejaram o “dia do fogo”, em 2019, e incendiaram vastas porções da maior floresta tropical do mundo.

Também preciso dizer a você, Maria, que Bolsonaro nunca escondeu seus gostos e pulsões. Ele já declarou que “a ditadura deveria ter matado pelo menos uns 30.000”, que preferia “um filho morto num acidente de trânsito a um filho gay”, que quem discorda dele “vai para a Ponta da Praia”. O que é “Ponta da Praia”, você certamente perguntará. E eu vou ter que explicar a você, Maria, que era um lugar de desova dos corpos dos opositores, torturados até a morte durante o regime militar que oprimiu o Brasil de 1964 a 1985, quando seu pai e eu éramos crianças e depois adolescentes.

Você saberá então, Maria, de mais um triste momento da história do seu país. Bolsonaro, Maria, é produto desse capítulo tenebroso do Brasil. É filho legítimo, principalmente, da impunidade daqueles que torturaram e mataram a mando e a soldo do Estado. Foi ali que Bolsonaro aprendeu que, a serviço do Estado, é possível liberar todas as pulsões de morte, todo o desejo de destruição dos corpos alheios, sem jamais ser responsabilizado e punido por isso. Ao contrário. Como aconteceu com Bolsonaro, o funcionário público planeja explodir quartéis e é promovido a capitão, depois vira deputado e um dia se torna presidente do país.

Ninguém tem como herói declarado um dos mais sádicos torturadores do Brasil por acaso. Sim, Maria, eu sofro para dizer isso a você, mas é preciso. O herói do presidente do Brasil é Carlos Alberto Brilhante Ustra, um homem que torturava até mesmo mulheres grávidas e crianças do seu tamanho, Maria. E, preciso repetir a você, porque você tem direito à verdade: Bolsonaro nunca escondeu isso. Pelo contrário. Ostentava seu herói publicamente como um troféu e, na campanha eleitoral que faria dele presidente, a figura do torturador foi estampada numa camiseta. E mesmo assim esse homem —esse homem— foi eleito.

Bolsonaro é o mal, Maria. E, antes que você levante seus olhos inquisidores na minha direção, eu preciso voltar a falar do seu pai, do contrário não terei forças para chegar ao final dessa carta. E preciso chegar.

Penso que seu pai aprendeu a ver com dona Geraldinha, a mãe que se alfabetizou aos 92 anos porque não queria morrer cega das letras, a mulher de palavra cantada que pariu 16 crianças na roça de Passos, em Minas Gerais. Nenhum sofrimento, e eles foram muitos, deixou marca nos olhos de sua avó, Maria. Eu queria tanto que você a tivesse conhecido, porque dona Geraldinha, assim como seu pai, tinha a pureza de quem a todo momento “renasce para a eterna novidade do mundo”. Dona Geraldinha deu ao seu pai, Maria, olhos de primeira vez.

E foi com esses olhos, Maria, que seu pai se tornou um fotógrafo capaz de documentar a brutalidade, a extensa folha corrida de violações de direitos dos tantos Brasis, sem jamais deixar de capturar a beleza mesmo nas horas brutas. Era nisso que seu pai era imbatível. Lilo apreendia num vislumbre onde estava a resistência pela alegria, pelo riso, pelas delicadezas do cotidiano. É desse olhar suas melhores fotos. E é com esse olhar que suas imagens atravessaram o mundo estampando páginas impressas ou digitais de publicações como EL PAÍS, The Guardian, Folha de S. Paulo, Amazônia Real, Repórter Brasil e tantas outras.

Meu caminho se cruzou com o do seu pai, Maria, em 2001, quando nós dois trabalhávamos na revista Época. Viajamos juntos pela primeira vez para o território Yanomami. Nunca tínhamos trocado palavra antes dessa pauta e olhávamos desconfiados um para o outro. Depois de avião, helicóptero e voadeira, finalmente alcançamos a aldeia indígena à noite, ensopados de chuva amazônica. Nos ofereceram vermes assados na brasa das fogueiras e um espaço no lado de fora da bela casa coletiva. Só cabia uma rede, e seu pai e eu dormimos com o pé de um na cara do outro.

Choveu sobre nós a noite inteira e atravessamos a madrugada tremendo de frio. Ao amanhecer, despertamos com os gritos da equipe de saúde que acompanhávamos: “No chão, não! Segura por favor! Cospe aqui!”. Os profissionais da ONG Urihi precisavam coletar o primeiro catarro da manhã para teste de tuberculose, a doença levada pelos garimpeiros que dizimava —e ainda dizima— os indígenas. Nunca vimos tanto catarro na nossa vida. Com uma estreia dessa magnitude, ou nos amávamos para sempre ou nos odiávamos para sempre. Seu pai e eu nunca mais nos separamos. Tornamo-nos irmãos de alma na vida e uma dupla de reportagem no jornalismo —e nunca separamos uma dimensão da outra. É por isso que, quando você nasceu, Maria, tive a honra de ser sua madrinha.

Duas décadas já haviam se passado desde a primeira reportagem e dezenas de outras aconteceram. Em 2017, seu pai e eu decidimos documentar o Brasil e o mundo desde a Amazônia e nos mudamos para Altamira. Desembarcamos na cidade na noite de 16 de agosto e, numa típica lilagem, na mesma noite seu pai beijava sua mãe (ou sua mãe beijava seu pai) no trapiche do cais, na beira do rio Xingu. Sua mãe, Maria, já era uma das mulheres mais bonitas da região, mas principalmente, Maria, uma ativista pela Amazônia e pelos direitos das mulheres negras. Você nasceu desse amor maior do mundo, Maria, e foi alimentada a leite materno e manifestações contra Belo Monte e tudo o que não presta, onde você passava de colo em colo, amparada por mãos assinaladas por trabalho duro.

E por tudo o que não presta seu pai foi morto, Maria. Ele possivelmente se contaminou com covid-19 ao documentar em vídeo o ecocídio produzido pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte na Volta Grande do Xingu. Esse crime já foi denunciado pelo Ministério Público Federal, mas ainda assim segue sendo perpetrado por conivência do Governo Bolsonaro. Quando você puder ler essa carta, Maria, você já terá descoberto. Ainda assim, preciso te dizer. Você, Maria, nasceu e crescerá numa cidade transfigurada por uma obra corrupta e corruptora. Altamira, Maria, se tornou a cidade mais violenta da Amazônia. Nesse cenário de cataclisma climático provocado por ação humana, adolescentes começaram a se matar em série no início de 2020. Vamos acordar desde já, Maria, que você aprenderá com sua mãe a resistir a todas as formas de morte.

Doente desde os primeiros dias de março, seu pai enfrentou todo o colapso do sistema público de saúde numa cidade amazônica. Sobre esse capítulo, Maria, vou precisar pedir licença a você para me aprofundar em uma segunda carta, porque há muito que ainda precisa ser esclarecido. Por enquanto, vou apenas mencionar que seu pai morreu na fila por uma vaga numa UTI pública de São Paulo.

Seu pai só não morreu na rua, Maria, como aconteceu —e ainda acontece— com milhares de brasileiras e brasileiros porque uma rede de amigas e amigos dedicou seus dias a conseguir doações que permitiram interná-lo na UTI de um hospital privado. Ainda assim, seu pai morreu com uma dívida impagável que nem todas as vaquinhas e vendas de fotos e de camisetas conseguiram alcançar. Seu pai sonhou tanto com a casa própria que nunca conseguiu construir com seu salário de jornalista enquanto viveu e sua morte custou um valor capaz de construir várias casas. Assim é o Brasil, Maria.

Para não perder o fio, é necessário que eu siga te contando sobre tudo o que não presta. Você deve ter percebido, Maria, que eu cada vez prolongo mais os parágrafos sobre seu pai porque meu coração se rebela diante da pergunta inescapável. Desta vez, prometo, vou enfrentar seus olhos e deixar que eles me furem.

Você vai me perguntar, Maria, com o olhar sangrando, por que Bolsonaro não foi barrado. Você vai me perguntar, Maria, por que as instituições, em todas as áreas, não impediram Bolsonaro de seguir disseminando o vírus e matando brasileiras e brasileiros. E eu vou ter que dizer a você que aqueles que comandam as instituições se dividem entre os covardes e os corrompidos. Ambos cúmplices, já que a omissão é um tipo de ação.

Para você não sentir-se tão ferida pela sociedade brasileira, é justo que eu diga a você que já são muito mais de 100 os pedidos de impeachment de Bolsonaro hibernando na gaveta do presidente do Congresso. Primeiro foi Rodrigo Maia, que os manteve lá, hoje é Arthur Lira, representante de uma facção do parlamento formada por deputados de aluguel cujo apelido é Centrão. Quem paga mais, leva. E Bolsonaro desembolsou 3 bilhões de dinheiro público em verbas extras para alugar a lealdade de excelentíssimas excrescências. Para que começassem a investigar a atuação do Governo Bolsonaro na pandemia por uma comissão parlamentar de inquérito foi preciso uma ordem do Supremo Tribunal Federal.

Eu sei, Maria, eu também sinto nojo. E o vômito me atravessa a garganta quando me obrigo a te dizer que existe ainda uma entidade metafísica a que dão o nome de “mercado”. Essa entidade apoiou e respaldou Bolsonaro, assim como o miniministro da Economia, Paulo Guedes, por acreditar que poderia lucrar com Bolsonaro no poder. É preciso dizer que, embora seja pronunciada como se fosse uma entidade acima do bem e do mal, movendo-se por forças superiores, o tal “mercado” é apenas um clube muito seleto de humanos feitos com o mesmo número de cromossomos que eu e você, mas que se apropriam da maior parte da riqueza do planeta. Parte desse clube seletíssimo já fez as contas e desistiu, mas há os que ainda acreditam que Bolsonaro pode seguir tendo alguma utilidade. Esse clube resume-se a um punhado de bilionários e supermilionários e um número menos insignificante de executivos a soldo deles.

Tenho de te contar, Maria, que uma parte da imprensa do país faz bochecho com antisséptico bucal antes de pronunciar ou escrever a palavra “mercado”, como se estivesse se referindo a uma espécie de Oráculo de Delfos. E, para se referir aos generais e às Forças Armadas que apoiaram (e apoiam) Bolsonaro, duplica a dose de enxaguante assim como os amantes fazem para se preparar para o primeiro beijo. Um dia, talvez numa terceira carta, vou precisar te contar, Maria, sobre o fetiche de farda que acomete o Brasil. Qualquer general de pantufa faz essa turma tremer. Ainda não sei dizer se por medo ou por pulsão erótica.

Eu sei, Maria, sei que ainda estou fugindo do tema mais difícil. Desculpa, mas ainda não será nesse parágrafo. Vou precisar contar um pouco mais sobre seu pai para voltar a preencher meus pulmões com ar depois dessa rápida incursão pelo esgoto.

Quero te contar que seu pai tinha se tornado verbo. A definição do verbo “lilar” virou até camiseta à venda na lojinha online criada para arrecadar doações para o tratamento e também para o seu sustento e o da sua mãe. Como está o Lilo, as pessoas me perguntavam? Lilando. E todos já entendiam que ele estava se movendo pelas ruas como se o mundo fosse bom e não tivesse pressa, parando para coletar uma muda de flor por onde andasse sem perceber que a 4X4 tirou fino, poetando nas esquinas, cantando seu assombroso repertório de MPB ou a coleção completa de Pink Floyd com a certeza inabalável do amor da plateia.

Seu pai era assim, Maria. Mesmo pisando sobre campo minado, ele cantava ou poetava, como se intuísse que era preciso manter a leveza ao pisar nas bombas para não explodir com elas. Desarmava qualquer um, às vezes literalmente, com sua certeza de que ninguém teria motivo para fazer mal a ele. Seu pai acreditava que, no final, sempre haveria alguém disposto a lançar uma corda para ele emergir do fosso já puxando um samba. E assim seguia lilando Brasis afora.

Faço mais uma vez uma prece silenciosa para que seu pai não tenha descoberto que dessa vez o buraco era fundo demais e nem todas as cordas que os médicos e enfermeiros, assim como sua família e seus amigos jogaram foram suficientes para enfrentar um extermínio promovido com a máquina do Estado.

Não, Maria, ainda não vou retomar esse caminho de escuridão. Ainda preciso te contar que fui descobrindo devagar que existe algo em que seu pai era ainda mais talentoso do que na fotografia. Lilo era um gênio do amor. A rede que se teceu em apenas um dia para cuidar dele e, agora, também de você e sua mãe, é a prova da capacidade do seu pai em ser amado. E ele retribuía. Enquanto não foi intubado, mesmo na UTI, seu pai dava um jeito de responder às mensagens que recebia de todas as geografias. Como já não tinha ar nem força suficientes para escrever ou falar, promovia uma farta distribuição de emojis. A última mensagem que tenho dele no meu whatsapp tem um coração, nove árvores copadas, três coqueiros e três plantinhas fofas. E então seu pai mergulhou no coma induzido.

Eu jamais imaginaria, Maria, que nossas últimas palavras trocadas seriam emojis. Há 20 anos eu e seu pai andávamos juntos contando os Brasis, eu como repórter de texto, ele como repórter de fotos. Sempre acreditei que, quando escrevia, somava os olhos do Lilo aos meus. E, quando ele fotografava, somava os meus olhos aos dele. Nos movíamos pelo mundo de modo quase simbiótico, nos entendendo apenas pelo olhar. Preciso contar a você, Maria, que quando os olhos de seu pai foram fechados, passei a andar pelos mundos, os de fora e os de dentro, meio cega, cambaleando, desacostumada a ter apenas um par de olhos para contar as histórias desse tempo. E, quando soube que Lilo nunca mais voltaria abri-los, senti que seus olhos tinham sido amputados de mim.

Sim, eu sei Maria, é hora de enfrentar os teus olhos bem abertos. E me encarando. O que eu adiei até agora é a pergunta inescapável. Por que nós não impedimos Bolsonaro?

Eu poderia começar essa resposta te contando que o Brasil é um país fundado sobre corpos humanos, os dos indígenas e depois os dos negros que aqui chegaram escravizados. Você tem, Maria, essa história gravada no corpo, é a tua história. Esse país sempre conviveu com a morte violenta, acreditando que era “normal” existir os matáveis, gente da sua cor, Maria, e os não matáveis. Teu povo, Maria, só parou de ser formalmente escravizado há pouco mais de um século e segue fornecendo a carne para as piores estatísticas de vida e de morte. É um país brutal, Maria, e mesmo a alma dos melhores entre nós é deformada pelo racismo estrutural.

Ainda assim não seria a história inteira. Minha geração é fraca, Maria, preciso dizer a você. Grita muito, mas se arrisca pouco a enfrentar os opressores. Prefere sempre arriscar o corpo dos outros, e a essa altura você já sabe a cor do corpo dos que são chamados a se sacrificar. Quando tua geração olhar para a minha, como você está fazendo agora, tenho certeza que teremos uma vergonha maior do que a vida, porque esse é o tipo de vergonha que mancha uma vida. A depender do tamanho da omissão, mancha até mesmo um nome, para muito além das primeiras gerações.

Sim, vocês, vítimas do fazedor de órfãos chamado Bolsonaro, vão cravar seus olhos em nós e perguntar: “Por que vocês não o impediram de matar nossos pais e mães? Onde vocês estavam? O que estavam fazendo?”. E, por fim, a pergunta mais dura: “Quem são vocês?”.

Te digo, Maria, que hoje já somos marcados de guerra. Nenhum povo perde quase meio milhão de pessoas sem ficar marcado. E seremos assinalados por essa vergonha, por essa afronta, por esse ultraje de testemunhar o extermínio e nos descobrir acostumados a morrer ou a ver matar. Eu já repeti essa pergunta algumas vezes e volto a repetir: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?

Já está dado, Maria, já aconteceu. Mais de 410.000 mortes assinalam uma sociedade para sempre. O que não está dado é se permitiremos que outros mais de 410.000 morram. Neste momento, o Congresso faz uma CPI para apurar os crimes do Governo Bolsonaro relacionados à covid-19. Acredite, Maria, só agora, pela primeira vez, a responsabilidade de Bolsonaro sobre as mortes por covid-19 tornou-se o principal tema do Brasil.

Quando você ler essa carta, Maria, já estará decidido e contado nos livros de história se Bolsonaro seguiu matando seu povo ou se finalmente, com um atraso para sempre criminoso, ele foi responsabilizado e barrado. Espero, Maria, mas espero tanto, que você e todos os órfãos tenham algum motivo não para nos perdoar, porque é imperdoável, mas ao menos para ter menos vergonha da minha geração. Que possamos dizer, ainda que tardiamente, que obrigamos as instituições a cumprir seu dever constitucional.

Pelo menos uma coisa eu te prometo, Maria, e prometo também a todas as crianças sem mãe e sem pai. O que aconteceu será contado, será documentado, será gravado em pedra se for preciso. Os filhos e netos de cada autoridade que se omitir conhecerão a história que manchará seu sobrenome. E enquanto eu encontrar ar para respirar estarei lutando para ver Bolsonaro responder por seus crimes na justiça, a do Brasil e a do mundo. Não faço isso por você, Maria, não sou mentirosa. Faço isso por mim. O olhar que mais temo é o meu no espelho do banheiro.

Lembrar será nossa resistência. Lembrar é sempre nossa resistência. E lembraremos, Maria. E transmitiremos essa memória geração após geração.

Eu tinha planejado terminar essa carta falando sobre borboletas. Mas não será como planejei. Para não dizer que não falei de borboletas, vou então te contar o seguinte, Maria. A viagem mais importante que eu e seu pai fizemos aconteceu em 2004. Fomos os primeiros jornalistas a alcançar a Terra do Meio, no Pará, na Amazônia profunda. As fotos do seu pai e o meu texto foram decisivos para impulsionar a criação da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio. É por isso que seu pai colocou na capa do perfil dele no Facebook uma foto aérea do Riozinho e escreveu: “Enterrem meu coração numa curva do Riozinho do Anfrísio”.

Quando alcançamos o Riozinho pela primeira vez, Maria, fomos engolfados por uma revoada de borboletas. Não dezenas nem centenas, mas milhares. Eram amarelas, de vários tons de amarelo, e para sempre eu e seu pai sentiríamos que havíamos atravessado um portal. Um portal da floresta, sim, mas também um portal dentro de nós. Daquele momento em diante, nós dois começamos a nos amazonizar. Maria, o Riozinho se tornou para nós a terra das borboletas amarelas.

Aprendemos, seu pai e eu, a nos tornar natureza ou nos retornar natureza. É também por isso que afirmo a você, Maria, com toda convicção, que não era hora de seu pai morrer. Bolsonaro destrói a floresta numa velocidade só vista no período da ditadura civil-militar. Milhares e milhares de quilômetros quadrados de mundos complexos povoados por gentes de todas as espécies, humanas e não humanas, foram deletados do mapa. Bolsonaro destruiu também a vida de mais de 410.000 famílias, entre elas a sua.

Com esse massacre, Bolsonaro e seu Governo provocaram um profundo desequilíbrio no planeta. Não se apaga quase meio milhão de vidas sem causar um cataclisma. Eu sei que na sociedade que vê pessoas apenas como indivíduos e não como seres em constante intercâmbio com outros seres, essa ideia é de difícil apreensão. Mas você, Maria, é capaz de compreender. Já podemos sentir esse desequilíbrio no ar que nos falta. Cada morto que deveria estar vivo esgarça o tecido da Terra. O que acontece nesse momento é uma catástrofe de grandes proporções, para muito, mas muito além de uma lista de vítimas.

Na hora em que seu pai morreu, eu tive um sonho acordada. Vi uma onça que se movia delineada em branco. Não uma onça como a vemos na floresta que vemos, mas semelhante a um fantasma de onça. E ela estava furiosa. A dor que senti com a morte do seu pai era a dor de ter minhas tripas arrancadas a dentadas. Compreendi então que seu pai era a onça. E compreendi que eu precisava deixá-lo partir. A onça então embrenhou-se na floresta. Dou a você esse sonho, para que seu pai reconvertido em onça caminhe ao seu lado por todas as florestas.

Seu pai não terá o coração enterrado numa curva do Riozinho. Mas terá, sim, suas cinzas lançadas lá onde esse rio pequeno apenas no nome encontra o Iriri. E eu espero que o portal de borboletas amarelas se abra para recebê-lo. Parece simples, porque as borboletas sempre estiveram lá, mas dias atrás soube que Bolsonaro e todos os destruidores da Amazônia antes dele e com ele estão roubando também as cores das borboletas. Cientistas do Brasil e do Reino Unido descobriram que as borboletas estão se tornando cinzas e pardas para se mimetizar a uma natureza morta que assumiu a cor das queimadas e derrubadas. Sim, Maria, homens como Bolsonaro e sua estirpe de assassinos estão também roubando literalmente a cor do mundo.

Não vou iludir você, Maria, com histórias de esperança. Não sou esse tipo de madrinha. Você e todas as órfãs e órfãos nasceram no tempo que luto é luta. E terão que lutar —e muito— para que o mundo em que viverão siga tendo cor. Eu estarei ao seu lado, com minhas palavras e meus dentes.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

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