Di Cavalcanti - Mulata em rua vermelha,1960
Sou
feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é
preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames
por uma porção da alma que nem chegou a falecer.
–
Levanta, ó dono das preguiças. É o mando de minha vizinha, a mulata Dona
Luarmina.
Eu
respondo: -Preguiçoso? Eu ando é a embranquecer as palmas das mãos. -Conversa
de malandro…
– Sabe
uma coisa, Dona Luarmina? O trabalho é que escureceu o pobre do preto. E, afora
isso, eu só presto é para viver…
Ela ri
com aquele modo apagado dela. A gorda Luarmina sorri só para dar rosto à
tristeza.
– Você,
Zeca Perpétuo, até parece mulher…
–
Mulher, eu? – Sim, mulher é que senta em esteira. Você é o único homem que eu
vi sentar na esteira.
– Que
quer vizinha? Cadeira não dá jeito para dormir.
Ela se
afasta, pesada como pelicano, abanando a cabeça. Minha vizinha reclama não
haver homem com miolo tão miúdo como eu. Diz que nunca viu pescador deixar
escapar tanta maré:
– Mas
você, Zeca: é que nem faz ideia da vida. – A vida, Dona Luarmina? A vida é tão
simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos
Deus ou não Deus…
Além
disso, pensar traz muita pedra e pouco caminho. Por isso eu, um reformado do
mar o que me resta fazer? Dispensado de pescar, me dispenso de pensar. Aprendi
nos muitos anos de pescaria: o tempo anda por ondas. A gente tem é que ficar
levezinho e sempre apanha boleia numa dessas ondeações. – Não é verdade, Dona
Luarmina? A senhora sabe essas línguas da nossa gente. Me diga, minha Dona:
qual é a palavra para dizer futuro? Sim, como se diz futuro? Não se diz, na
língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo
nunca chega a haver. Então eu me suficiento do actual presente. E basta. – Só
eu quero é ser um homem bom, Dona. – Você é mas é um aldrabom.
A gorda
mulata não quer amolecer conversa. E tem razão, sendo minha vizinha desde há
tanto. Ela chegou ao bairro depois da morte de meus pais, quando herdei a velha
casa da família. Nessa altura, eu ainda pescava em longas viagens, semanas de
ausência nos bancos de Sofala. Nem notava a existência de Luarmina. Também ela,
logo que desembarcou, se internou na Missão, em estágio para freira. Ficou
enclausurada nessas penumbras onde se murmura conversa com Deus.
Só uns
anos mais tarde ela saiu dessa reclusão. E se instalou na casa que os padres
lhe destinaram, bem junto à minha morada. Luarmina costureirava, era seu
sustento. Nos primeiros tempos, ela continuava sem se dar às vistas. Só as
mulheres que entravam em seus domínios é que lhe davam conta. No resto, me
chegavam apenas os perfumes de sua sombra. Um dia o padre Nunes me falou de
Luarmina, seus brumosos passados. O pai era um grego, um desses pescadores que
arrumou rede em costas de Moçambique, do lado de 1á da baía de S. Vicente. Já se
antigamentara há muito.
A mãe
morreu pouco tempo depois. Dizem que de desgosto. Não devido da viuvez, mas por
causa da beleza da filha. Ao que parece, Luarmina endoidava os homens graúdos
que abutreavam em redor da casa. A senhora maldizia a perfeição de sua filha.
Diz-se que, enlouquecida, certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina.
Só para a esfeiar e, assim, afastar os candidatos.
Depois da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado
de cá, para ela se amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que
arrumar a moça por fora, engomá-la por dentro. E foi assim que ela se dedicou a
linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua actual moradia, nos
arredores de minha existência.
Só bem
depois de me retirar das pescarias é que dei por mim a encostar desejos na
vizinha. Comecei por cartas, mensagens à distância. À custa de minhas
insistências namoradeiras Luarmina já aprendera as mil defesas. Ela sempre me
desfazia os favores, negando-se. – Me deixa sossegada, Zeca. Não vê que eu já
não desengomo lençol? – Que ideia, Dona vizinha? Quem lhe disse que eu tinha
essa intenção?
Todavia,
ela tem razão. Minhas visitas são para lhe caçar um descuido na existência
beliscar-lhe uma ternura. Só sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela,
arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto
sempre ao lugar dela. – Dona Luarmina, o que é isso? Parece ficou mesmo freira.
Um dia, quando o amor lhe chegar, você nem o vai reconhecer… – Deixe-me, Zeca.
Eu sou velha, só preciso é um ombro.
Confirmando
esse atestado de inutensílio, ela esfrega os joelhos como se fossem eles os
culpados do seu cansaço. As pernas dela da maneira como incham, dificultam as
vias do sangue. Lhe icebergam os pés, a gente toca e são blocos de gelo. E ela
sempre se queixa. Um dia aproveitei para me oferecer: – Quer que lhe aqueça os
pés? Arrepiando expectativa, ela até aceitou. Até eu fiquei assim, meio
desfisgado, o coração atropelando o peito. – Me aquece, Zeca? – Sim, aqueço
mas… pela parte de dentro.
Mia
Couto
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