9 de set. de 2020

O antropólogo Lucas Bulgarelli explica como a agenda moralista de Damares ajuda o projeto ultraliberal de Guedes. Por Rosana Pinheiro-Machado do The Intercept Brasil

 

O antropólogo Lucas Bulgarelli é pesquisador da USP e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP. Foto: Arquivo Pessoal


Após a repercussão do estupro e o aborto da menina de 10 anos, conversei com o antropólogo Lucas Bulgarelli sobre as origens políticas do movimento conservador bem como sobre a comunhão de agendas de Paulo Guedes e Damares Alves, que, longe de serem opostas, são parte de um mesmo projeto.

Bulgarelli é hoje uma das principais referências para compreender o movimento conservador em ascensão no Brasil. Sua pesquisa etnográfica sobre “ideologia de gênero” foca nas câmaras municipais, assembleias legislativas estaduais e em escolas. Até o momento, ele visitou 17 cidades no sul do país que têm em comum alta incidência de votos em Jair Bolsonaro em 2018 (em torno de 70-80%). A veia antropológica dessa pesquisa mostra o movimento conservador não se dá forma homogênea, mas com nuances que são fundamentais para a compreensão de como certos valores chegam a pessoas comuns: a mãe, a avó e a professora da pequena cidade.

O pesquisador em Antropologia na USP é também um ativista influente no movimento LGBT o Brasil e coordena o Núcleo de Pesquisas e Gênero da OAB-SP.

Rosana Pinheiro-Machado – Na sua pesquisa, histórias como a da menina estuprada de 10 anos são recorrentes?

Lucas Bulgarelli – Sim. A pesquisa teve uma intenção inicial de investigar cidades mais interioranas. Encontrei um banheiro masculino de uma rodoviária em uma cidade do oeste do Paraná em que quase todos os banheiros havia inscrições sobre como homens adultos estupravam meninas dentro do convívio familiar. Um exemplo é esse caso recente da menina do Espírito Santo. Ela é natural de São Mateus, uma cidade que também recentemente teve um projeto de lei vedando o debate de gênero e sexualidade nas escolas.

Esses fenômenos não estão dissociados. Pelo contrário, eles têm encontrado formas de retirar o poder de responsabilidade do estado sobre essas questões, deslocando para família a responsabilidade tanto do poder parental quanto da gestão do gênero e da sexualidade. Ao longo dos últimos anos, conseguimos um conjunto de direitos de gênero e sexualidade que, embora ainda precários e insuficientes, tem se estabelecido como políticas de estado. São compromissos que o estado brasileiro assume em instâncias internacionais e transnacionais. Mas eles têm sido deslocados da dinâmica de políticas de estado para políticas de governo, de modo que governos, como o governo Bolsonaro, atuam em sentido contrário às leis nesse campo.

Qual o papel do governo Bolsonaro nesse deslocamento?

O Ministério dos Direitos Humanos até mudou de nome no governo Bolsonaro e expressa bem esse deslocamento: chama-se hoje o Ministério da Família, Mulheres e Direitos Humanos. Sob o comando de Damares Alves, ele cumpre um papel bastante importante na implementação de um projeto rígido e conservador e na articulação dessas demandas em nível institucional. Favorece uma legitimação desse debate que é agora parte das estruturas do estado e das administrações públicas.

Quem são essas pessoas que você pesquisou? Como se propagam ideias antigênero entre as pessoas comuns?

A pesquisa de campo tem revelado alguns contextos bastante interessantes que mostram que o debate de gênero e sexualidade não é conhecido pela maior parte da população. Mas há uma noção mais ou menos comum acerca da ameaça trazida pela “ideologia de gênero”.

Minha investigação em contextos não urbanos, não metropolitanos, tem permitido compreender como que muitas vezes o trabalho de gênero não está acessível, mas a ideologia de gênero consegue aglutinar. Percebe-se que as ideias antigênero fazem parte de uma agenda, de um conjunto de campanhas e ações que apresenta transformações na ordem dos direitos humanos. Ou seja, uma ideia forte que disputa o que seriam os direitos humanos e os valores sociais e que se apresenta em termos de combate. O inimigo, no caso, são o movimento LGBTs, as feministas, o campo progressista, que operariam por mecanismos conspiratórios. Então, essa ideia do “bem x mal” acaba sendo materializada em termos como “a ideologia da morte” ou “a cultura da morte” versus “a ideologia da vida” e a “cultura da vida”, de acordo com o ponto de vista conservador dessas campanhas antigênero. O “mal” está sempre localizado fora, um elemento externo que poderia adentrar na escola, na família, na cidade como se fosse uma contaminação.

Essas pessoas que atuam em campanhas antigêneros valorizam elementos fascistas, masculinistas, mas os apoiadores dessas campanhas não são um bloco homogêneo. Pessoas que não são necessariamente religiosas ou cristãs também as apoiam. Conseguimos identificar sujeitos que se identificam com o campo progressista, mas que ainda assim mantêm posicionamentos conservadores.

Há, no governo Bolsonaro, uma aliança entre evangélicos e católicos no campo conservador. Como que ocorre na prática essa aliança?

É possível dizer que a agenda antigênero e pró-vida no Brasil é uma agenda com uma atuação transnacional com particularidades regionais. No caso brasileiro, ela adentra por meio da atuação tanto de um ativismo de juízes, promotores, psicólogos, psiquiatras, quanto por uma atuação forte da Igreja Católica e de setores evangélicos.

Então, essas alianças entre forças que tradicionalmente não se aliavam têm sido bastante efetivas na atuação de campanhas antigênero e pró-vida no Congresso, no Judiciário – sobretudo no Supremo Tribunal Federal (STF) – e agora, mais recentemente, no Executivo federal e estadual.

Essa é uma aliança que faz parte, na verdade, de um conjunto mais amplo de movimentos sociais conservadores na qual há uma presença massiva de lideranças e instituições católicas e evangélicas, mas não apenas delas. A gente pode falar de um ativismo profissional que opera na sociedade por meio de determinados setores que passaram a reivindicar uma leitura tradicional e conservadora da sua própria atuação.

A Camila Rocha, cientista política da USP, tem identificado como discurso antiaborto e o movimento antiaborto no Brasil têm arregimentado tanto apoiadores quanto interlocutores e atores que extrapolam os limites da religião de modo que a gente poderia pensar essas articulações por meio do conservadorismo. De fato não são pautas e agendas exclusivamente empenhadas por forças religiosas, muito embora haja um preponderância dessas forças e um vocabulário utilizado que retoma uma certa moralidade cristã como, por exemplo, esse embate do “bem x mal”.

Vale lembrar que essa aliança que mais recentemente tem dominado a agenda de atividades e as políticas públicas federais é uma articulação que não surgiu no governo Bolsonaro. A “Carta ao Povo de Deus”, assinada pela então candidata Dilma Rousseff em 2010, fazia justamente esse movimento de apaziguamento entre o apoio dos movimentos feministas, LGBTs, como base de sustentação política e social do governo, frente a possibilidade de alianças e articulações com os extratos evangélicos e católicos conservadores. Essa aliança encontra agora, no atual governo, uma morada bastante satisfatória justamente porque tem, na própria composição ministerial do governo, figuras que são bastante importantes e influentes no fomento de uma retórica antigênero e no desenvolvimento de políticas nesse sentido.

Recentemente você afirmou que “o engajamento das pessoas comuns nessas narrativas diabólicas e antigênero não é burrice, não é fé cega, não é influência do zap apenas”. Você poderia explicar mais?

Enxergar o fenômeno das campanhas antigênero e dos grupos pró-vida somente pelo viés individual, tachando os apoiadores de fanáticos ou de fundamentalistas, nos faz perder de vista as articulações nacionais e transnacionais que constituem esses movimentos. Houve manifestações tanto de lideranças políticas quanto de instituições conservadoras pró-vida defendendo o direito às duas vidas no caso da menina do Espírito Santo.

É importante entender que elas não se colocam simplesmente contra os direitos – quem tem afirmado com bastante contundência é a Sonia Correia e o Sexuality Policy Watch, o SPW. O que esses grupos propõem é uma interpretação alternativa do que seriam os direitos humanos, uma interpretação centrada nas categorias vidas e família.

Na sua avaliação, qual é o papel da Damares Alves no governo Bolsonaro?

A Damares foi uma certa surpresa para setores do campo progressista. Muita gente se perguntou como uma assessora do Magno Malta, que era o cotado para a pasta, pôde substituir o próprio cotado e se transformar na ministra dos Direitos Humanos. Mas quem acompanha a trajetória dela há algum tempo percebe que a construção da reputação da Damares começa pelo menos uma década antes com a fundação da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), em 2012, e que passa desde então a ter uma atuação bastante importante no lobby, tanto no STF quanto Congresso Nacional para barrar projetos relacionados a direitos sexuais reprodutivos, direitos de gênero e sexualidade e tentar implementar uma agenda política centrada numa moralidade cristã. A Anajure, o berço político da Damares, participou nos últimos anos de uma série de debates fundamentais a respeito desses temas, como o debate de aborto de anencéfalos, o estatuto de nascituros, a utilização de células-tronco para pesquisa, a possibilidade da eutanásia.

A Damares exerce um papel central no governo por sua capacidade de aglutinar grupos e setores distintos que vão além dos neopentecostais. Ela aglutina diferentes atores por meio de uma base conservadora, por meio da legitimação de um discurso preconceituoso e do combate ao direitos de gênero e sexualidade e da produção de uma moral e de uma ética conservadora. Durante muitos anos, as pessoas não podiam ser reconhecidas assim sem serem pelo menos questionadas. Hoje há uma chance maior de os indivíduos se reconhecerem como conservadores e cristãos de direita, e a Damares encarna essa representação.

A que você atribui o sucesso da aprovação da Damares no governo?

Há um conjunto de fatores que explicam por que Damares se tornou tão popular. O primeiro deles é o modo como ela se comunica, de forma acessível, de como ela aborda temas tão complexos de modo simplificador. Essa simplificação dos debates de gênero e sexualidade é muito operativa para se entender dinâmicas que são complexas e ambivalentes na maior parte dos casos.

É assim que a Damares acaba dialogando não apenas com a direita, mas com o conservadorismo que também está presente entre pessoas identificadas com o campo progressista. Isso é importante de ser dito porque a gente sabe que o debate de gênero e sexualidade no Brasil não é um debate. Por mais que seja um debate atrelado à esquerda historicamente, houve e ainda há resistência a esses temas na esquerda.

Como ministra, a Damares consegue ser muito efetiva na produção de uma militância conservadora. A atuação da Damares funciona como parte importante deste nó que conecta a implementação de projeto moral tanto de sociedade quanto de nação. É curioso também notar que a Damares de certo modo é representante do seu próprio discurso. Ela age como uma espécie de reserva moral do governo, nesse sentido de aconselhar, de dar broncas como uma mãe. Percebe-se isso no vazamento do vídeo recente sobre a reunião ministerial que a Damares não age como uma ministra, mas parece ser uma consciência moral do governo, encarna justamente o papel que uma mulher deveria cumprir na família.

As pautas morais por muito tempo foram consideradas cortina de fumaça para a pauta econômica. O que você pensa sobre isso?

Essa distinção entre pautas morais e econômicas diz mais sobre o campo progressista, que propõe essa classificação, do que propriamente sobre como os fenômenos ocorrem no campo conservador. A cortina de fumaça não é uma tentativa do governo Bolsonaro de ludibriar as esquerdas com polêmicas. A cortina de fumaça diz respeito à dificuldade de setores da esquerda em compreender o modo como as desigualdades de classe, de gênero, de raça e de sexualidade são operadas em mecanismos distintos de precarização da população. As forças conservadoras não enxergam as questões morais como questões menores ou menos importantes do que as questões econômicas, justamente porque elas são co-dependentes.

Como se dá a articulação atual do conservadorismo e neoliberalismo?

O neoliberalismo do jeito como tem sido desempenhado não parte só de um projeto político e econômico, mas também de um projeto relacionado à construção de uma subjetividade política e econômica da sociedade. Então, é importante questionar uma cisão geralmente feita no campo liberal entre liberalismo originário e a atuação de governos que se dizem neoliberais. Pois o projeto neoliberal de Hayek, um dos pais da Escola Austríaca e deste movimento neoliberal, é um projeto político e um projeto moral também. De acordo com a cientista política Wendy Brown, ele busca manter hierarquias e faz isso por meio da negação do social e da capacidade democrática dos estados de interferir em temas sociais relacionados a gênero, à sexualidade, às crianças e aos adolescentes.

O neoliberalismo, o conservadorismo ou o neoconservadorismo não se colocam como projetos distintos ou em colisão, mas são retroalimentados um pelo outro. O conservadorismo funciona como uma espécie de repositório moral da ética desse sujeito neoliberal estimulado a uma hiper individualização, à competição, a valorizar o mérito por meio da narrativa da superação pessoal. O conservadorismo vem para repor a crença de um sujeito formatado para um sujeito self-made man, preparado para vencer os obstáculos a partir de uma ótica individual. Esse sistema que busca manter as coisas como elas estão favorece esse sujeito a compreender o mundo por meio da sobrevalorização da capacidade individual em detrimento dos laços afetivos e de solidariedade.

A racionalidade neoliberal tem preparado terreno para a articulação de projetos conservadores e antidemocráticos que atuam justamente no sentido da otimização da exploração do trabalho e da destituição de um conjunto de garantias sociais para grupos vulneráveis. As campanhas antigênero e pró-vida incorporam elementos centrais do neoliberalismo, como a mercantilização das atividades do estado, como educação, saúde, assistência social. Elas buscam também retirar do estado a responsabilidade sobre essas questões.

É importante pensar que esse conservadorismo, que tem uma influência forte cristã, mas que não é exclusivamente cristão, é influenciado por doutrinas como a teologia do corpo (desenvolvida pelo papa João Paulo II, que significou uma reação católica ao avanço dos direitos de gênero e sexualidade proporcionado pelo movimento feminista nos anos 70 e 80) e pela teologia da prosperidade, bastante comungada por setores evangélicos. Ambas favorecem também a constituição de uma ética conservadora, que encontra bastante afinidade com essa ética neoliberal.

Então, tanto a teologia do corpo (por meio da valorização do papel da mulher na estrutura familiar) quanto a teologia da prosperidade (como essa forma de alcançar o divino por meio do desenvolvimento e da acumulação material) têm uma ligação muito forte com o neoliberalismo por meio dessa lógica conservadora, e o conservadorismo também encontra guarida na lógica neoliberal.

Nesse sentido é que você e a professora e antropóloga Isabela Kalil afirmam que Paulo Guedes e Damares Alves fazem parte de um mesmo projeto bolsonarista?

Sim. Guedes e Damares fazem parte do mesmo projeto. Seus projetos encontram não só afinidades, mas se alimentam mutuamente. Essa divisão entre pautas morais e pautas econômicas é uma classificação realizada pelo campo progressista, mas não há uma mesma noção encontrada no campo conservador que, muito embora seja formado por pessoas e grupos distintos, ainda sim acaba operando por meio de denominadores comuns como o ataque ao estado de bem-estar social, aos direitos sociais, ao papel do estado na interferência de assuntos que são considerados privados. São projetos que comungam uma mesma base e um mesmo projeto político e social de matriz autoritária, conservadora e reacionária.

Por que a família é uma unidade central para o projeto conservador e neoliberal?

A família atua como o ente por meio do qual se terceiriza a gestão da esfera reprodutiva e doméstica da vida. As ações do ministério da Damares terceirizam à família um papel que caberia ao estado. Se a gente observa as duas grandes campanhas do ministério da Damares, percebemos que ambas atuam terceirizando à família aquilo que deveria ser responsabilidade do estado. Uma campanha está relacionada à educação gestada pela família, o homeschooling, e a outra é a de abstinência sexual para jovens e adolescentes. A família passa a ocupar um papel de gestora da moral e da ética implicada nessas atividades.

É curiosa também a recente campanha que Damares realizou sobre o uso de máscara. Ela faz uma campanha direcionada a jovens e adolescentes, e o prêmio para o autor da máscara mais criativa era uma passagem para Brasília para conhecer a ministra Damares e a primeira-dama, tratada com muito deboche pela esquerda. A campanha de abstinência sexual, também tratada por alguns setores do campo progressista como absurda, encontra muita ressonância em pais e mães preocupados em valorizar a sua atividade parental para combater os males aos quais os filhos estariam submetidos.

Desses males, a gente pode elencar a violência, o uso de drogas e, mais recentemente, a ideologia de gênero. A ideologia de gênero tem sido um modo por meio do qual esses debates acerca da sexualidade se comunicam com as pessoas, faz elas pensarem: será que eu estou cuidando bem do meu filho? Será que eu estou sendo um bom pai ou uma boa mãe se eu não estiver de alguma forma combatendo o discurso de gênero e sexualidade capaz de contaminar o meu filho? É por meio dessa lógica também que a família passa a ser importante para o projeto neoliberal e conservador.

Fora do brasil, como você enxerga a articulação do ultraliberalismo e do conservadorismo. É uma tendência da nova direita globalmente? Como e quando emergem a política antigênero?

As campanhas antigênero e pró-vida surgem numa formulação intensa de setores ultraconservadores do Vaticano ao longo dos anos 70 e 80, como uma reação aos movimentos feminista, LGBT, pela saúde sexual e reprodutiva. Esses movimentos estavam com algum êxito emplacando legislações nacionais e infuenciando o sistema global de proteção, por meio da ONU e suas agências.

No Brasil, antes da Constituinte, já havia um processo de articulação do movimento homossexual, à época assim denominado, que buscava inserir o termo orientação sexual na Constituição, no parágrafo que previa as garantias individuais. Mas o termo não foi inserido por causa da articulação de grupos religiosos conservadores. A democracia brasileira já se inicia sem essa proteção às pessoas LGBT, fruto de uma oposição articulada às pressas, mas muito efetiva.

Nos Estados Unidos ocorreu a criação de algumas entidades ao longo dos anos 70 e 80 já focadas na valorização da vida por meio da proposição desse vocabulário que entende os direitos de gênero e sexualidade como direitos que corrompem a vida e valorizam a morte, por causa da defesa do aborto. Então são entidades que a Camila Rocha tem pesquisado em artigos como “Women Life International” ou a “40 days for life”, entidade que faz campanha em hospitais que fazem aborto e que no ano passado fez uma ação em frente ao Hospital Pérola Byington. Também tem outras entidades como “American United For Life” e associações nacionais pró-vida que surgem no Brasil ao longo dos anos 90 com uma interpretação conservadora que valoriza uma re-ideologização da diferença sexual entre as pessoas.

Em nível global, a gente tem uma série de encontros que marcam a inscrição do gênero e da sexualidade na ordem de proteção dos direitos humanos – particularmente a conferência do Cairo em 1994, que discutiu sobre os direitos reprodutivos, e a conferência de Pequim no ano seguinte, que se assenta a noção de direitos sexuais. São eventos lembrados como uma conquista dos movimentos sociais feministas e LGBT, mas que foram marcados por fortes oposições e pela produção de uma interpretação teológica, que busca compreender esses direitos a partir de uma ótica conservadora.

A ideia da ideologia de gênero é bastante circunscrita a um contexto específico do Vaticano. O Cardeal Ratzinger, antes de se tornar Papa Bento XVI, se dedicava fortemente a construção de um arco, teórico, analítico, teológico e católico direcionado a compreender o fenômeno do gênero e da sexualidade. Então é aí que surge a produção da ideologia do gênero – de fato uma produção, porque a palavra foi testada em uma série de ocasiões. São dezenas de termos que foram elencados para poder descrever o que seria o gênero e a sexualidade, teoria do gênero diverso, teoria do gênero queer. Ideologia de gênero acaba sendo a palavra escolhida. A primeira vez que ela aparece em um documento foi em 1997 no livro da escritora Dale O’Leary chamado “The Gender Agenda”, que tenta demonstrar o que seria a perspectiva do gênero e a atuação de movimentos feministas e LGBT. O que tem ocorrido também é a utilização de um vocabulário científico para validar posições conservadoras e cristãs sobre concepção, identidade de gênero, orientação sexual, maternidade, estupro.

Como seu trabalho de campo, somado a sua militância, pode ajudar a iluminar o debate progressista na compreensão da nova direita, no que estamos errando?

Entender como essas agendas antigênero e pró-vida não são exclusivamente religiosas, mas trazem diversos de atores que convergem na defesa de um projeto de país onde o aborto, mesmo nas raras situações que ele é legalizado, é questionado. Isso desperta a necessidade de uma atuação que não se valha apenas de posicionamentos defensivos ou posteriores. É preciso encarar os debates de gênero e sexualidade como pautas importantes porque está ocorrendo no Brasil um desmonte da democracia, uma precarização dos laços sociais e consolidação de um projeto político autoritário e conservador.


Fonte: The Intercept Brasil, em 1 de setembro de 2020.

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