26 de set. de 2020

Ana Cañas canta Belchior


Bel Prazer

 

“En la vereda tropical
Hay cana e canela e crecen las palmas
Y yo soy un hombre sincero
Quero um ombro pra abraçar.

En la vereda tropical
Hay cana e canela e crecen las palmas
Y yo soy un hombre sincero
Quero um ombro pra abraçar.

Achar ou inventar um lugar,
Tão humano como o corpo,
Onde pensar e gozar,
Seja livre e tão legal:”

Belchior



 

19 de set. de 2020

Eros, Terra, Caetano e Marcuse



“Só se todo o corpo fosse reerotizado, declarou Marcuse, seria possível superar o trabalho alienado, que se fundamentava na reificação das áreas não genitais do corpo. Uma sociedade modificada, que não mais se baseasse no “princípio de desempenho”, repressivo e antiquado, poria fim a “repressão excedente” historicamente enraizada e, com isso, liberaria o indivíduo do trabalho alienado e gerador de tensão. O jogo estetizado substituiria a labuta; o princípio do Nirvana e a destruição procedente de sua inibição deixariam de dominar a vida. O resultado seria a “pacificação da existência” (JAY, 2008, p. 160).*






*Referência:

DOMINAÇÃO E LIBERDADE EM HERBERT MARCUSE de Bartolomeu Pereira Lucena

 

18 de set. de 2020

Recomendação do MPGO garante direito à saúde integral de vítimas de violências sexuais

 

Apoiadores levam presentes a menina que 10 anos que fez aborto em hospital no Recife Cisam/Divulgação


Recomendação conjunta do MP e MPF orienta SES e SMS sobre interrupção legal da gravidez


O Ministério Público de Goiás (MP-GO) e o Ministério Público Federal (MPF) em Goiás expediram, nesta sexta-feira (4/9), recomendações conjuntas às Secretarias Estadual e Municipal de Saúde (Goiânia), contendo orientações para os profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) que realizam atendimentos voltados para interrupção legal da gravidez. As recomendações foram elaboradas após a edição de portaria pelo Ministério da Saúde (Portaria n° 2.282 GM/MS) que dispõe, entre outras providências, sobre a obrigatoriedade da notificação à autoridade policial dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro.

De acordo com os documentos, a comunicação compulsória a autoridades policiais em caso de atendimentos para interrupção de gravidez em decorrência de estupro não poderá, em circunstância alguma, impedir ou comprometer a assistência à vítima dessa violência. O comunicado deverá ser feito somente para fins estatísticos, sem informações pessoais da vítima, exceto nos casos em que haja seu consentimento expresso para que o crime seja apurado pela polícia.

Sem julgamento
Outro ponto destacado pelas instituições é de que o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei deve ser conduzido, sempre, sem nenhum tipo de julgamento da vítima, com total respeito à sua autonomia, garantindo-lhe acolhimento eficaz e efetivo atendimento médico ante aos demais trâmites administrativos envolvidos.

As recomendações também orientam que os profissionais de saúde se abstenham de oferecer às mulheres que buscam atendimento para interromper gravidez resultante de estupro a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, tendo em vista tanto a desnecessidade clínica de tal medida, quanto o seu potencial de violência psicológica e institucional contra a vítima. 

Outro ponto é a orientação às mulheres que buscam atendimento para interromper gravidez resultante de estupro acerca da real probabilidade dos riscos descritos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com cada caso concreto, de modo que esta etapa do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei não venha a se tornar um obstáculo ou constrangimento à autonomia da vítima.

Outros Estados
Os documentos foram assinados pelos promotores de Justiça Marcus Antônio Ferreira Alves, Heliana Godói de Sousa Abrão Bueno e Marlene Nunes Freitas, e pela procuradora regional dos direitos do cidadão e titular do Ofício de Direitos Sexuais e Reprodutivos, Mariane Guimarães de Mello Oliveira.

Além de Goiás, também expediram recomendações no mesmo sentido as unidades do MPF nos seguintes Estados: Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins.

Foi fixado o prazo de 15 dias, a contar do recebimento das recomendações, para manifestação acerca do acatamento de seus termos. Em caso de descumprimento, poderão ser adotadas as medidas administrativas e judiciais cabíveis. (Texto:Assessoria de Comunicação do MPF-GO - Edição: Assessoria de Comunicação Social do MP-GO)

Abaixo o texto original das Recomendações:

RESOLVEM, na forma do art. 6º, XX, da Lei Complementar nº 75/93, RECOMENDAR ao Secretário Estadual de Saúde de Goiás que, em face da Portaria n° 2.282/2020 do Ministério da Saúde, oriente os profissionais do Sistema Único de Saúde que realizam atendimento para interrupção à gravidez em caso de aborto que:

 

a) que a comunicação compulsória a autoridades policiais em caso de atendimento para interrupção de gravidez em decorrência de estupro apenas deve ser feita para fins estatísticos para formulação de políticas públicas de segurança e para policiamento, sem informações pessoais da vítima, exceto em consentimento expresso dela para que o crime seja apurado pela polícia ou quando absolutamente incapaz;

b) que não se ofereça a visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, exceto quando haja pedido espontâneo da vítima, devendo ser garantidos todos seus direitos como paciente; e

c) que oriente as mulheres que buscam atendimento para interromper gravidez resultante de estupro acerca da probabilidade dos riscos descritos no termo no caso do procedimento realizado com acompanhamento médico, bem como dos riscos da própria manutenção da gravidez e parto.

Estabelece-se o prazo de 15 (quinze) dias, a contar do recebimento desta recomendação, para que Vossa Senhoria se manifeste acerca do acatamento de seus termos.

EFICÁCIA DA RECOMENDAÇÃO: a presente recomendação dá ciência e constitui em mora os destinatários quanto às providências solicitadas e poderá implicar a adoção de todas as providências administrativas e judiciais cabíveis contra os responsáveis inertes em face da violação das normas acima referidas.”

Acesse o texto completo AQUI

Fonte: site do Ministério Público do Estado de Goiás

12 de set. de 2020

Bibi Ferreira e Lázaro Ramos | Espelho (2011)



“Eles pensam que a maré vai, mas nunca volta. Até agora eles estavam comandando o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando, recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta e tão forte quanto eles me imaginam fraca. Quando eles virem invertida a correnteza, quero saber se eles resistem à surpresa, quero ver como eles reagem à ressaca.

Trecho da peça Gota D'água escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes em 1977, encenada por Bibi Ferreira





11 de set. de 2020

Advogadas de Mariana Ferrer vão recorrer da decisão de absolvição de André Aranha - Por Juliana Rabelo, Catarinas

 
Ilustração: Camila do Rosário


Tribunal de Justiça de Santa Catarina inocentou o empresário em decisão divulgada nesta quarta-feira (9); Advogadas dizem que Mariana recebeu a notícia com muita indignação.

*Colaboração de Inara Fonseca

A equipe de advogados de Mariana Ferrer vai recorrer da decisão que absolve André de Camargo Aranha da acusação de estupro de vulnerável – caso em que a vítima não tem capacidade de consentir. A decisão emitida nesta quarta-feira (09) pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, causou espanto e movimentou mais uma vez as redes sociais que voltaram a pedir #JustiçaPorMariFerrer. Aranha é acusado de estuprar a influenciadora digital em um beach club, em Jurerê Internacional, Florianópolis (SC), em dezembro de 2018.

A advogada de Mariana, Jackie Francielle Anacleto, conversou com a vítima logo após a decisão.

“O estado dela não tem nem como descrever. Imagina uma vítima que sofre o que ela sofreu e ter este tipo de resultado. Ela recebeu a notícia com indignação”, conta. 

Um dos questionamentos que mais ecoou na internet foi a alegação do magistrado sobre a ausência de “provas contundentes nos autos a corroborar a versão acusatória”. No processo, além do depoimento de Mariana, consta o resultado do exame pericial que confirma os traços genéticos com o do acusado, a presença de sangue e a ruptura do hímem indicando que até então Mariana era virgem. Há ainda anexado imagens da câmera de segurança no momento em que ambos sobem pela escadaria que dá acesso ao camarim onde a vítima teria sido violentada.  

“A decisão diz que Aranha poderia achar que ela não estava dopada e que queria a relação, diz que ele a estuprou sem intenção de estuprar, mas eles não levaram em consideração que o réu mente desde o primeiro depoimento. Primeiro ele negou à polícia que tinha tido contato com a Mariana, e no segundo momento ele disse que não teve conjunção carnal, mas como se tem vestígios? Os argumentos da decisão são muito frágeis“, afirma Jackie Anacleto

Roupas Caso Mariana Ferrer

Roupas usadas por Mariana Ferrer no dia do suposto estupro. (Foto: Divulgação)

Segundo o código penal, o conceito de estupro é amplo. Ele é classificado como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Quando o que se comete é o estupro de vulnerável, ou seja, sem que a vítima tivesse condições de se manifestar, a presunção de violência passa a ser, em tese, absoluta, e não mais relativa. Mesmo assim, em todos o casos leva-se em consideração a presunção de inocência, porém é inegável que a valoração da palavra da vítima deve ser maior. Por conta da cultura de estupro enraizada na sociedade em que se coloca o holofote na vítima (ou nas roupas da vítima, por exemplo) e não no acusado, os resultados de processos de estupro no Brasil não são levados a sério no Brasil. 

“A palavra da vítima tem que contar, às vezes é a única coisa que ela tem, no caso da Mariana tinham mais coisas. Tinham testemunhas, ela juntou quase tudo que era possível, ela foi atrás das imagens das câmeras de segurança, das roupas, das conversas de whatsapp. É diferente porque não foi só a palavra dela contra a dele, tem um compilado de coisas que ela recolheu, são muitos indícios e mais, uma pessoa se expondo dizendo o que aconteceu, se isso tudo não leva à condenação de um homem branco e rico, quais chances nós temos de alguém denunciar uma situação parecida na periferia, de denunciar o chefe, por exemplo?”, questiona Liliane Araújo, integrante do Coletivo Valente de mulheres do judiciário catarinense.

Na decisão o magistrado alega que “da análise das imagens, é possível perceber que a ofendida durante todo o percurso mantém uma postura firme, marcha normal, com excelente resposta psicomotora, cabelos e roupas alinhadas e, inclusive, mesmo calçando salto alto, consegue utilizar o aparelho telefônico durante o percurso”. Apesar do laudo toxicológico ter apontado a inexistência de álcool e substâncias químicas, Mariana relata ter  lacunas de memórias de uma parte da noite. 

“Sabemos que há uma infinidade de drogas que levam a esse tipo de apagamento/sedação. É fundamental saber qual exame foi feito, qual substância testada, a metodologia de teste. Inclusive, porque tem drogas que a característica é justamente desaparecer rápido do organismo. E ainda que não se tenha encontrado vestígios, não se pode descartar outros elementos comprobatórios”, afirma a advogada Isabela del Monde, integrante do Me too Brasil e da Rede Feminista de Juristas.

Caso Mariana Ferrer: Essa absolvição por ausência de provas é um deboche

Imagens Caso Mariana Ferrer

Imagem da câmera de segurança do beach club, Cafe de La Musique, em que Mariana e André aparecem subindo a escadaria que dá acesso ao camarim onde a vítima teria sido violentada. (Foto: Reprodução)

De acordo com a advogada de Mariana há uma testemunha fundamental que comprova que ela estava dopada.

“O depoimento do motorista do Uber coaduna com a gravação feita através do celular com a mãe da Mariana, ele diz que ela estava visivelmente dopada. Está muito claro que ela estava dopada, que não estava consciente. Não estamos falando de um furto, o delito de estupro é um delito que ocorre na surdina, então o depoimento da vítima tem que ter valor”, afirma Anacleto. 

O caso de Mariana Ferrer foi recheado de falhas na investigação e intimidações. O beach club possui 37 câmeras de segurança, mas só as imagens da escadaria foram anexadas aos autos, o inquérito policial demorou 7 meses para ser finalizado quando o prazo são 30 dias. “O antigo promotor do caso, Alexandre Piazza, deixou claro que os dois delegados que atenderam a Mariana primeiramente deveriam responder a um inquérito por má conduta das investigações. Um deles chegou a aparecer na casa de Mariana quando a mãe não estava no local”, conta a advogada de acusação. 

PARECER DO MP A FAVOR DO RÉU CAUSA ESTRANHAMENTO, DIZEM JURISTAS

A decisão em inocentar o empresário André Aranha é respaldado pelo parecer do Ministério Público de Santa Catarina a favor da absolvição do réu ante a falta de provas. Apesar do MP ter o poder em pedir a absolvição do réu, o posicionamento pela inocência causou estranheza por parte de juristas.

“É complicado essa posição do MP, causa estranhamento que o próprio Ministério tenha achado que era tão óbvio a absolvição, é um absurdo, porque se tem uma chance da Mariana estar certa, o MP tem que fazer de tudo para que essa pessoa seja presa. Fico curiosa em relação à conduta. Da onde essas pessoas conseguem achar que é tão absurdo a possibilidade da Mariana ter sido estuprada?, questiona Liliane Araújo. 

De acordo com o promotor do caso, Thiago Carriço Oliveira, “após analisar todos os indícios e elementos de prova, não descarta a hipótese de inconsciência da vítima, já que esta é sua alegação. Todavia, os exames toxicológico e de alcoolemia testaram negativo no dia seguinte ao fato. Do mesmo modo, não foram constatados elementos que comprovem que o acusado tinha conhecimento da suposta inconsciência da vítima”.

“A tese usada pelo MP é que ela não estava dopada, tem testemunha que diz que ela estava normal, outras dizem que ela estava bêbada e outras dizem que ela estava drogada, considerando que não considero nenhuma delas como testemunha por terem relação com o Cafe de La Musique. Mesmo ela estando bêbada, ele não poderia ter tido relação sexual com ela”, ressalta Jackie Anacleto. 

Para a advogada Isabela Del Monde não dá pra descartar elementos de raça, gênero e classe presentes neste caso. “O Ministério Público pediu absolvição e ele tem a função de acusação. Quem estava acusando pediu absolvição, ignorando todos os demais elementos  de prova. A minha análise é de que a gente está diante, mais uma vez, de homens brancos com condições financeiras decidindo sobre a situação”, declara. 

E completa: “Fica clara a seletividade do Ministério Público com essa atuação. Nunca vi nenhum Ministério Público, por exemplo,  pedindo a absolvição de um garoto de 19 anos com um baseado de maconha. Nesses casos, ele é um grande traficante de altíssima periculosidade. O Ministério Público é contra o punitivismo do Estado em determinadas situações, com alguns determinados sujeitos e não são os sujeitos pretos e pobres da periferia. Este caso da Mariana Ferrer revela, na verdade, a seletividade do próprio sistema penal em si. Se você é um empresário, branco, rico, com poder de influência, ainda que existam inúmeros elementos probatórios, o Judiciário e o Ministério Público vão conseguir proteger o seu caso”. 

Imagem Caso Mariana Ferrer

Momento em que Mariana desce a escadaria do camarim. Logo depois o empresário também sai do local. (Foto: Reprodução)

“MELHOR ABSOLVER CEM CULPADOS DO QUE CONDENAR UM INOCENTE”, TRECHO DO JUIZ NA DECISÃO

Na decisão o juiz chega a citar o ditado, “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”. O trecho foi rechaçado pelas advogadas entrevistadas. 

“Eu nunca vi um juiz falando isso para uma decisão que fosse de uma pessoa negra. Nós temos a terceira maior população carcerária do mundo, se o juiz falasse isso pra todos os casos a realidade brasileira seria diferente, certo? A questão é que há uma seletividade absurda no sistema penal brasileiro que fica claro no caso da Mariana Ferrer. O olhar de um promotor, de um juiz, de um policial não vê como bandido pessoas brancas que se parecem seus filhos, seus netos. No Brasil, homem branco não é bandido. É um reflexo claro do patriarcado e do racismo que coloca também as mulheres como seres de segunda categoria de cidadania”, afirma del Monde.

Para Liliane Araújo, do coletivo de mulheres do judiciário, a raiz do problema é o machismo enraizado na justiça brasileira. “O judiciário não é um ente a parte da sociedade, ele é contaminado pela sociedade. Se por um lado há um esforço de integrantes da justiça pelos direitos das mulheres, por outro o machismo ainda é muito forte lá dentro. Essa frase do juiz é um escárnio. Se esses cem culpados respondessem por estupro, então seriam cem, duzentas, trezentas vidas destruídas. Essa fala deixa claro que a vida da mulher não vale nada”, declara. 

A última audiência ocorrida no fim de julho deste ano foi um exemplo claro de como a cultura do estupro funciona. As roupas e a aparência física de Mariana foram usadas em meio a falas machistas da defesa com objetivo de desvalidar o caráter e a intenção da vítima. A estratégia trata de considerar Mariana como um objeto e não como uma pessoa. De acordo com a advogada de Mariana, a defesa usou fotos de trabalhos da modelo na tentativa de humilhá-la.

“O tempo todo o advogado de defesa vulgarizava a Mariana com as fotos, mostrava as imagens e falava “olha esse dedinho na boquinha”. Ele chegou a mostrar uma foto em que a Mariana está de cócoras vestida com uma camiseta e soltou “Essa tua pose ginecológica”. O promotor não se manifestou contra esses comentários, ficou calado o tempo todo”, conta Anacleto. 

A reportagem entrou em contato com a delegada Caroline Monavique Pedreira, da Dpcami (Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso) da Capital, mas ela não quis se manifestar por o processo correr em segredo de justiça. O Ministério Público de SC se pronunciou através de nota presente na matéria. 

A Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) divulgou nota em que afirma estar de acordo com a sentença proferida pelo juiz. 

Nota da AMC

“A Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) vem a público manifestar-se a respeito da sentença proferida ontem (09/09/20) pelo juiz da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, cujo teor gerou manifestações nas redes sociais.

A sentença em questão, amplamente fundamentada pelo magistrado, dá conta da absolvição de réu denunciado pela suposta prática de estupro de vulnerável (art. 217-A, §1º, do Código Penal) com base nas provas produzidas nos autos e, também, em razão da manifestação do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), que considerou as provas do processo insuficientes para amparar condenação. Ao juiz cabe analisar as provas apresentadas e julgar nos termos da lei, sem descuidar de que sejam observados os direitos e garantias de todos os envolvidos no processo.

Eventual descontentamento com decisão judicial deve ser apresentado na forma legal, por meio dos recursos cabíveis que estão à disposição da vítima e de seus representantes legais.

Ao sistema judiciário e seus operadores exige-se respeito. Ofensas pessoais e ameaças ao magistrado, veiculadas principalmente nas redes sociais, serão devidamente apuradas e seus autores, responsabilizados nos termos da lei.

A AMC destaca o seu compromisso com a defesa das prerrogativas da magistratura, dentre as quais a independência de todas as juízas e juízes para julgar com a autonomia necessária para interpretarem a lei e as provas de cada processo.”

LINHA DO TEMPO DO CASO MARIANA FERRER


Fonte: Catarinas, 10 de setembro de 2020



9 de set. de 2020

O antropólogo Lucas Bulgarelli explica como a agenda moralista de Damares ajuda o projeto ultraliberal de Guedes. Por Rosana Pinheiro-Machado do The Intercept Brasil

 

O antropólogo Lucas Bulgarelli é pesquisador da USP e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP. Foto: Arquivo Pessoal


Após a repercussão do estupro e o aborto da menina de 10 anos, conversei com o antropólogo Lucas Bulgarelli sobre as origens políticas do movimento conservador bem como sobre a comunhão de agendas de Paulo Guedes e Damares Alves, que, longe de serem opostas, são parte de um mesmo projeto.

Bulgarelli é hoje uma das principais referências para compreender o movimento conservador em ascensão no Brasil. Sua pesquisa etnográfica sobre “ideologia de gênero” foca nas câmaras municipais, assembleias legislativas estaduais e em escolas. Até o momento, ele visitou 17 cidades no sul do país que têm em comum alta incidência de votos em Jair Bolsonaro em 2018 (em torno de 70-80%). A veia antropológica dessa pesquisa mostra o movimento conservador não se dá forma homogênea, mas com nuances que são fundamentais para a compreensão de como certos valores chegam a pessoas comuns: a mãe, a avó e a professora da pequena cidade.

O pesquisador em Antropologia na USP é também um ativista influente no movimento LGBT o Brasil e coordena o Núcleo de Pesquisas e Gênero da OAB-SP.

Rosana Pinheiro-Machado – Na sua pesquisa, histórias como a da menina estuprada de 10 anos são recorrentes?

Lucas Bulgarelli – Sim. A pesquisa teve uma intenção inicial de investigar cidades mais interioranas. Encontrei um banheiro masculino de uma rodoviária em uma cidade do oeste do Paraná em que quase todos os banheiros havia inscrições sobre como homens adultos estupravam meninas dentro do convívio familiar. Um exemplo é esse caso recente da menina do Espírito Santo. Ela é natural de São Mateus, uma cidade que também recentemente teve um projeto de lei vedando o debate de gênero e sexualidade nas escolas.

Esses fenômenos não estão dissociados. Pelo contrário, eles têm encontrado formas de retirar o poder de responsabilidade do estado sobre essas questões, deslocando para família a responsabilidade tanto do poder parental quanto da gestão do gênero e da sexualidade. Ao longo dos últimos anos, conseguimos um conjunto de direitos de gênero e sexualidade que, embora ainda precários e insuficientes, tem se estabelecido como políticas de estado. São compromissos que o estado brasileiro assume em instâncias internacionais e transnacionais. Mas eles têm sido deslocados da dinâmica de políticas de estado para políticas de governo, de modo que governos, como o governo Bolsonaro, atuam em sentido contrário às leis nesse campo.

Qual o papel do governo Bolsonaro nesse deslocamento?

O Ministério dos Direitos Humanos até mudou de nome no governo Bolsonaro e expressa bem esse deslocamento: chama-se hoje o Ministério da Família, Mulheres e Direitos Humanos. Sob o comando de Damares Alves, ele cumpre um papel bastante importante na implementação de um projeto rígido e conservador e na articulação dessas demandas em nível institucional. Favorece uma legitimação desse debate que é agora parte das estruturas do estado e das administrações públicas.

Quem são essas pessoas que você pesquisou? Como se propagam ideias antigênero entre as pessoas comuns?

A pesquisa de campo tem revelado alguns contextos bastante interessantes que mostram que o debate de gênero e sexualidade não é conhecido pela maior parte da população. Mas há uma noção mais ou menos comum acerca da ameaça trazida pela “ideologia de gênero”.

Minha investigação em contextos não urbanos, não metropolitanos, tem permitido compreender como que muitas vezes o trabalho de gênero não está acessível, mas a ideologia de gênero consegue aglutinar. Percebe-se que as ideias antigênero fazem parte de uma agenda, de um conjunto de campanhas e ações que apresenta transformações na ordem dos direitos humanos. Ou seja, uma ideia forte que disputa o que seriam os direitos humanos e os valores sociais e que se apresenta em termos de combate. O inimigo, no caso, são o movimento LGBTs, as feministas, o campo progressista, que operariam por mecanismos conspiratórios. Então, essa ideia do “bem x mal” acaba sendo materializada em termos como “a ideologia da morte” ou “a cultura da morte” versus “a ideologia da vida” e a “cultura da vida”, de acordo com o ponto de vista conservador dessas campanhas antigênero. O “mal” está sempre localizado fora, um elemento externo que poderia adentrar na escola, na família, na cidade como se fosse uma contaminação.

Essas pessoas que atuam em campanhas antigêneros valorizam elementos fascistas, masculinistas, mas os apoiadores dessas campanhas não são um bloco homogêneo. Pessoas que não são necessariamente religiosas ou cristãs também as apoiam. Conseguimos identificar sujeitos que se identificam com o campo progressista, mas que ainda assim mantêm posicionamentos conservadores.

Há, no governo Bolsonaro, uma aliança entre evangélicos e católicos no campo conservador. Como que ocorre na prática essa aliança?

É possível dizer que a agenda antigênero e pró-vida no Brasil é uma agenda com uma atuação transnacional com particularidades regionais. No caso brasileiro, ela adentra por meio da atuação tanto de um ativismo de juízes, promotores, psicólogos, psiquiatras, quanto por uma atuação forte da Igreja Católica e de setores evangélicos.

Então, essas alianças entre forças que tradicionalmente não se aliavam têm sido bastante efetivas na atuação de campanhas antigênero e pró-vida no Congresso, no Judiciário – sobretudo no Supremo Tribunal Federal (STF) – e agora, mais recentemente, no Executivo federal e estadual.

Essa é uma aliança que faz parte, na verdade, de um conjunto mais amplo de movimentos sociais conservadores na qual há uma presença massiva de lideranças e instituições católicas e evangélicas, mas não apenas delas. A gente pode falar de um ativismo profissional que opera na sociedade por meio de determinados setores que passaram a reivindicar uma leitura tradicional e conservadora da sua própria atuação.

A Camila Rocha, cientista política da USP, tem identificado como discurso antiaborto e o movimento antiaborto no Brasil têm arregimentado tanto apoiadores quanto interlocutores e atores que extrapolam os limites da religião de modo que a gente poderia pensar essas articulações por meio do conservadorismo. De fato não são pautas e agendas exclusivamente empenhadas por forças religiosas, muito embora haja um preponderância dessas forças e um vocabulário utilizado que retoma uma certa moralidade cristã como, por exemplo, esse embate do “bem x mal”.

Vale lembrar que essa aliança que mais recentemente tem dominado a agenda de atividades e as políticas públicas federais é uma articulação que não surgiu no governo Bolsonaro. A “Carta ao Povo de Deus”, assinada pela então candidata Dilma Rousseff em 2010, fazia justamente esse movimento de apaziguamento entre o apoio dos movimentos feministas, LGBTs, como base de sustentação política e social do governo, frente a possibilidade de alianças e articulações com os extratos evangélicos e católicos conservadores. Essa aliança encontra agora, no atual governo, uma morada bastante satisfatória justamente porque tem, na própria composição ministerial do governo, figuras que são bastante importantes e influentes no fomento de uma retórica antigênero e no desenvolvimento de políticas nesse sentido.

Recentemente você afirmou que “o engajamento das pessoas comuns nessas narrativas diabólicas e antigênero não é burrice, não é fé cega, não é influência do zap apenas”. Você poderia explicar mais?

Enxergar o fenômeno das campanhas antigênero e dos grupos pró-vida somente pelo viés individual, tachando os apoiadores de fanáticos ou de fundamentalistas, nos faz perder de vista as articulações nacionais e transnacionais que constituem esses movimentos. Houve manifestações tanto de lideranças políticas quanto de instituições conservadoras pró-vida defendendo o direito às duas vidas no caso da menina do Espírito Santo.

É importante entender que elas não se colocam simplesmente contra os direitos – quem tem afirmado com bastante contundência é a Sonia Correia e o Sexuality Policy Watch, o SPW. O que esses grupos propõem é uma interpretação alternativa do que seriam os direitos humanos, uma interpretação centrada nas categorias vidas e família.

Na sua avaliação, qual é o papel da Damares Alves no governo Bolsonaro?

A Damares foi uma certa surpresa para setores do campo progressista. Muita gente se perguntou como uma assessora do Magno Malta, que era o cotado para a pasta, pôde substituir o próprio cotado e se transformar na ministra dos Direitos Humanos. Mas quem acompanha a trajetória dela há algum tempo percebe que a construção da reputação da Damares começa pelo menos uma década antes com a fundação da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), em 2012, e que passa desde então a ter uma atuação bastante importante no lobby, tanto no STF quanto Congresso Nacional para barrar projetos relacionados a direitos sexuais reprodutivos, direitos de gênero e sexualidade e tentar implementar uma agenda política centrada numa moralidade cristã. A Anajure, o berço político da Damares, participou nos últimos anos de uma série de debates fundamentais a respeito desses temas, como o debate de aborto de anencéfalos, o estatuto de nascituros, a utilização de células-tronco para pesquisa, a possibilidade da eutanásia.

A Damares exerce um papel central no governo por sua capacidade de aglutinar grupos e setores distintos que vão além dos neopentecostais. Ela aglutina diferentes atores por meio de uma base conservadora, por meio da legitimação de um discurso preconceituoso e do combate ao direitos de gênero e sexualidade e da produção de uma moral e de uma ética conservadora. Durante muitos anos, as pessoas não podiam ser reconhecidas assim sem serem pelo menos questionadas. Hoje há uma chance maior de os indivíduos se reconhecerem como conservadores e cristãos de direita, e a Damares encarna essa representação.

A que você atribui o sucesso da aprovação da Damares no governo?

Há um conjunto de fatores que explicam por que Damares se tornou tão popular. O primeiro deles é o modo como ela se comunica, de forma acessível, de como ela aborda temas tão complexos de modo simplificador. Essa simplificação dos debates de gênero e sexualidade é muito operativa para se entender dinâmicas que são complexas e ambivalentes na maior parte dos casos.

É assim que a Damares acaba dialogando não apenas com a direita, mas com o conservadorismo que também está presente entre pessoas identificadas com o campo progressista. Isso é importante de ser dito porque a gente sabe que o debate de gênero e sexualidade no Brasil não é um debate. Por mais que seja um debate atrelado à esquerda historicamente, houve e ainda há resistência a esses temas na esquerda.

Como ministra, a Damares consegue ser muito efetiva na produção de uma militância conservadora. A atuação da Damares funciona como parte importante deste nó que conecta a implementação de projeto moral tanto de sociedade quanto de nação. É curioso também notar que a Damares de certo modo é representante do seu próprio discurso. Ela age como uma espécie de reserva moral do governo, nesse sentido de aconselhar, de dar broncas como uma mãe. Percebe-se isso no vazamento do vídeo recente sobre a reunião ministerial que a Damares não age como uma ministra, mas parece ser uma consciência moral do governo, encarna justamente o papel que uma mulher deveria cumprir na família.

As pautas morais por muito tempo foram consideradas cortina de fumaça para a pauta econômica. O que você pensa sobre isso?

Essa distinção entre pautas morais e econômicas diz mais sobre o campo progressista, que propõe essa classificação, do que propriamente sobre como os fenômenos ocorrem no campo conservador. A cortina de fumaça não é uma tentativa do governo Bolsonaro de ludibriar as esquerdas com polêmicas. A cortina de fumaça diz respeito à dificuldade de setores da esquerda em compreender o modo como as desigualdades de classe, de gênero, de raça e de sexualidade são operadas em mecanismos distintos de precarização da população. As forças conservadoras não enxergam as questões morais como questões menores ou menos importantes do que as questões econômicas, justamente porque elas são co-dependentes.

Como se dá a articulação atual do conservadorismo e neoliberalismo?

O neoliberalismo do jeito como tem sido desempenhado não parte só de um projeto político e econômico, mas também de um projeto relacionado à construção de uma subjetividade política e econômica da sociedade. Então, é importante questionar uma cisão geralmente feita no campo liberal entre liberalismo originário e a atuação de governos que se dizem neoliberais. Pois o projeto neoliberal de Hayek, um dos pais da Escola Austríaca e deste movimento neoliberal, é um projeto político e um projeto moral também. De acordo com a cientista política Wendy Brown, ele busca manter hierarquias e faz isso por meio da negação do social e da capacidade democrática dos estados de interferir em temas sociais relacionados a gênero, à sexualidade, às crianças e aos adolescentes.

O neoliberalismo, o conservadorismo ou o neoconservadorismo não se colocam como projetos distintos ou em colisão, mas são retroalimentados um pelo outro. O conservadorismo funciona como uma espécie de repositório moral da ética desse sujeito neoliberal estimulado a uma hiper individualização, à competição, a valorizar o mérito por meio da narrativa da superação pessoal. O conservadorismo vem para repor a crença de um sujeito formatado para um sujeito self-made man, preparado para vencer os obstáculos a partir de uma ótica individual. Esse sistema que busca manter as coisas como elas estão favorece esse sujeito a compreender o mundo por meio da sobrevalorização da capacidade individual em detrimento dos laços afetivos e de solidariedade.

A racionalidade neoliberal tem preparado terreno para a articulação de projetos conservadores e antidemocráticos que atuam justamente no sentido da otimização da exploração do trabalho e da destituição de um conjunto de garantias sociais para grupos vulneráveis. As campanhas antigênero e pró-vida incorporam elementos centrais do neoliberalismo, como a mercantilização das atividades do estado, como educação, saúde, assistência social. Elas buscam também retirar do estado a responsabilidade sobre essas questões.

É importante pensar que esse conservadorismo, que tem uma influência forte cristã, mas que não é exclusivamente cristão, é influenciado por doutrinas como a teologia do corpo (desenvolvida pelo papa João Paulo II, que significou uma reação católica ao avanço dos direitos de gênero e sexualidade proporcionado pelo movimento feminista nos anos 70 e 80) e pela teologia da prosperidade, bastante comungada por setores evangélicos. Ambas favorecem também a constituição de uma ética conservadora, que encontra bastante afinidade com essa ética neoliberal.

Então, tanto a teologia do corpo (por meio da valorização do papel da mulher na estrutura familiar) quanto a teologia da prosperidade (como essa forma de alcançar o divino por meio do desenvolvimento e da acumulação material) têm uma ligação muito forte com o neoliberalismo por meio dessa lógica conservadora, e o conservadorismo também encontra guarida na lógica neoliberal.

Nesse sentido é que você e a professora e antropóloga Isabela Kalil afirmam que Paulo Guedes e Damares Alves fazem parte de um mesmo projeto bolsonarista?

Sim. Guedes e Damares fazem parte do mesmo projeto. Seus projetos encontram não só afinidades, mas se alimentam mutuamente. Essa divisão entre pautas morais e pautas econômicas é uma classificação realizada pelo campo progressista, mas não há uma mesma noção encontrada no campo conservador que, muito embora seja formado por pessoas e grupos distintos, ainda sim acaba operando por meio de denominadores comuns como o ataque ao estado de bem-estar social, aos direitos sociais, ao papel do estado na interferência de assuntos que são considerados privados. São projetos que comungam uma mesma base e um mesmo projeto político e social de matriz autoritária, conservadora e reacionária.

Por que a família é uma unidade central para o projeto conservador e neoliberal?

A família atua como o ente por meio do qual se terceiriza a gestão da esfera reprodutiva e doméstica da vida. As ações do ministério da Damares terceirizam à família um papel que caberia ao estado. Se a gente observa as duas grandes campanhas do ministério da Damares, percebemos que ambas atuam terceirizando à família aquilo que deveria ser responsabilidade do estado. Uma campanha está relacionada à educação gestada pela família, o homeschooling, e a outra é a de abstinência sexual para jovens e adolescentes. A família passa a ocupar um papel de gestora da moral e da ética implicada nessas atividades.

É curiosa também a recente campanha que Damares realizou sobre o uso de máscara. Ela faz uma campanha direcionada a jovens e adolescentes, e o prêmio para o autor da máscara mais criativa era uma passagem para Brasília para conhecer a ministra Damares e a primeira-dama, tratada com muito deboche pela esquerda. A campanha de abstinência sexual, também tratada por alguns setores do campo progressista como absurda, encontra muita ressonância em pais e mães preocupados em valorizar a sua atividade parental para combater os males aos quais os filhos estariam submetidos.

Desses males, a gente pode elencar a violência, o uso de drogas e, mais recentemente, a ideologia de gênero. A ideologia de gênero tem sido um modo por meio do qual esses debates acerca da sexualidade se comunicam com as pessoas, faz elas pensarem: será que eu estou cuidando bem do meu filho? Será que eu estou sendo um bom pai ou uma boa mãe se eu não estiver de alguma forma combatendo o discurso de gênero e sexualidade capaz de contaminar o meu filho? É por meio dessa lógica também que a família passa a ser importante para o projeto neoliberal e conservador.

Fora do brasil, como você enxerga a articulação do ultraliberalismo e do conservadorismo. É uma tendência da nova direita globalmente? Como e quando emergem a política antigênero?

As campanhas antigênero e pró-vida surgem numa formulação intensa de setores ultraconservadores do Vaticano ao longo dos anos 70 e 80, como uma reação aos movimentos feminista, LGBT, pela saúde sexual e reprodutiva. Esses movimentos estavam com algum êxito emplacando legislações nacionais e infuenciando o sistema global de proteção, por meio da ONU e suas agências.

No Brasil, antes da Constituinte, já havia um processo de articulação do movimento homossexual, à época assim denominado, que buscava inserir o termo orientação sexual na Constituição, no parágrafo que previa as garantias individuais. Mas o termo não foi inserido por causa da articulação de grupos religiosos conservadores. A democracia brasileira já se inicia sem essa proteção às pessoas LGBT, fruto de uma oposição articulada às pressas, mas muito efetiva.

Nos Estados Unidos ocorreu a criação de algumas entidades ao longo dos anos 70 e 80 já focadas na valorização da vida por meio da proposição desse vocabulário que entende os direitos de gênero e sexualidade como direitos que corrompem a vida e valorizam a morte, por causa da defesa do aborto. Então são entidades que a Camila Rocha tem pesquisado em artigos como “Women Life International” ou a “40 days for life”, entidade que faz campanha em hospitais que fazem aborto e que no ano passado fez uma ação em frente ao Hospital Pérola Byington. Também tem outras entidades como “American United For Life” e associações nacionais pró-vida que surgem no Brasil ao longo dos anos 90 com uma interpretação conservadora que valoriza uma re-ideologização da diferença sexual entre as pessoas.

Em nível global, a gente tem uma série de encontros que marcam a inscrição do gênero e da sexualidade na ordem de proteção dos direitos humanos – particularmente a conferência do Cairo em 1994, que discutiu sobre os direitos reprodutivos, e a conferência de Pequim no ano seguinte, que se assenta a noção de direitos sexuais. São eventos lembrados como uma conquista dos movimentos sociais feministas e LGBT, mas que foram marcados por fortes oposições e pela produção de uma interpretação teológica, que busca compreender esses direitos a partir de uma ótica conservadora.

A ideia da ideologia de gênero é bastante circunscrita a um contexto específico do Vaticano. O Cardeal Ratzinger, antes de se tornar Papa Bento XVI, se dedicava fortemente a construção de um arco, teórico, analítico, teológico e católico direcionado a compreender o fenômeno do gênero e da sexualidade. Então é aí que surge a produção da ideologia do gênero – de fato uma produção, porque a palavra foi testada em uma série de ocasiões. São dezenas de termos que foram elencados para poder descrever o que seria o gênero e a sexualidade, teoria do gênero diverso, teoria do gênero queer. Ideologia de gênero acaba sendo a palavra escolhida. A primeira vez que ela aparece em um documento foi em 1997 no livro da escritora Dale O’Leary chamado “The Gender Agenda”, que tenta demonstrar o que seria a perspectiva do gênero e a atuação de movimentos feministas e LGBT. O que tem ocorrido também é a utilização de um vocabulário científico para validar posições conservadoras e cristãs sobre concepção, identidade de gênero, orientação sexual, maternidade, estupro.

Como seu trabalho de campo, somado a sua militância, pode ajudar a iluminar o debate progressista na compreensão da nova direita, no que estamos errando?

Entender como essas agendas antigênero e pró-vida não são exclusivamente religiosas, mas trazem diversos de atores que convergem na defesa de um projeto de país onde o aborto, mesmo nas raras situações que ele é legalizado, é questionado. Isso desperta a necessidade de uma atuação que não se valha apenas de posicionamentos defensivos ou posteriores. É preciso encarar os debates de gênero e sexualidade como pautas importantes porque está ocorrendo no Brasil um desmonte da democracia, uma precarização dos laços sociais e consolidação de um projeto político autoritário e conservador.


Fonte: The Intercept Brasil, em 1 de setembro de 2020.

5 de set. de 2020

Viola Franca, o NÃO de uma mulher tem potência revolucionária.



Quando uma mulher diz não à opressão do patriarcado ela põe abaixo um torrão do mundo de absurdos. Franca Viola não se resignou, lutou por sua história de amor e por seu direito de escolha. Não foi submissa, valentemente desobedeceu a injusta lei siciliana que obrigava as vítimas de estupro a se casarem com os violadores. 

Cida Alves




"O plano de Filippo Melodia era igual ao de muitos jovens sicilianos na década de 60: iria raptar e violar a rapariga por quem se apaixonara, Franca Viola, para que ela o aceitasse como marido. 'Antes era normal que a mulher violada se casasse com o violador, porque se considerava uma desonra ter em casa uma filha vítima de um acto destes', explicou Franca ao jornal espanhol El Mundo, numa recente entrevista - apenas a segunda que deu em toda a vida.

A 26 de Dezembro de 1965, Filippo e mais oito amigos ligados à máfia entraram de rompante em casa de Franca, em Alcamo, a cerca de 70 quilómetros de Palermo.

Sequestraram-na, juntamente com o irmão Mariano, de 8 anos, e mantiveram-na em cativeiro uma semana. Nesse período, Filippo violou-a e agrediu-a várias vezes. Quando a polícia a resgatou, Franca não estava submissa: estava revoltada. E dias depois, quando Filippo a pediu em casamento, como forma de 'restaurar a sua honra', deu-lhe uma resposta inédita: 'Só me casarei com um homem que ame.' Não se limitou a dizer 'não': fez queixa às autoridades.

Franca Viola foi a primeira italiana a rejeitar o chamado 'matrimónio reparador' - de acordo com o código penal do país, que só mudou 15 anos depois, em 1981, os autores de violação ou de abuso sexual podiam escapar à prisão se se casassem com a vítima, mesmo que esta não tivesse retirado a denúncia contra eles. A violação era, então, considerada como um crime contra a honra e não contra a liberdade sexual do indivíduo."

Fonte: Sabado, 1 de abril de 2017

Foto: divulgação internet

Franca Viola venció al patriarcado