O antropólogo Lucas Bulgarelli é
pesquisador da USP e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade
da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP. Foto: Arquivo Pessoal
Após a repercussão do estupro e
o aborto da menina de 10 anos, conversei com o antropólogo Lucas Bulgarelli
sobre as origens políticas do movimento conservador bem como sobre a comunhão
de agendas de Paulo Guedes e Damares Alves, que, longe de serem opostas, são
parte de um mesmo projeto.
Bulgarelli é hoje uma das
principais referências para compreender o movimento conservador em ascensão no
Brasil. Sua pesquisa etnográfica sobre “ideologia de gênero” foca nas câmaras
municipais, assembleias legislativas estaduais e em escolas. Até o momento, ele
visitou 17 cidades no sul do país que têm em comum alta incidência de
votos em Jair Bolsonaro em 2018 (em torno de 70-80%). A veia antropológica
dessa pesquisa mostra o movimento conservador não se dá forma homogênea, mas
com nuances que são fundamentais para a compreensão de como certos valores
chegam a pessoas comuns: a mãe, a avó e a professora da pequena cidade.
O pesquisador em Antropologia
na USP é também um ativista influente no movimento LGBT o Brasil e coordena o
Núcleo de Pesquisas e Gênero da OAB-SP.
Rosana Pinheiro-Machado – Na
sua pesquisa, histórias como a da menina estuprada de 10 anos são recorrentes?
Lucas Bulgarelli – Sim. A pesquisa teve
uma intenção inicial de investigar cidades mais interioranas. Encontrei um
banheiro masculino de uma rodoviária em uma cidade do oeste do Paraná em que
quase todos os banheiros havia inscrições sobre como homens adultos estupravam meninas
dentro do convívio familiar. Um exemplo é esse caso recente da menina do
Espírito Santo. Ela é natural de São Mateus, uma cidade que também recentemente
teve um projeto de lei vedando o debate de gênero e sexualidade nas escolas.
Esses fenômenos não estão
dissociados. Pelo contrário, eles têm encontrado formas de retirar o poder de
responsabilidade do estado sobre essas questões, deslocando para família a
responsabilidade tanto do poder parental quanto da gestão do gênero e da
sexualidade. Ao longo dos últimos anos, conseguimos um conjunto de
direitos de gênero e sexualidade que, embora ainda precários e insuficientes,
tem se estabelecido como políticas de estado. São compromissos que o estado
brasileiro assume em instâncias internacionais e transnacionais. Mas eles têm
sido deslocados da dinâmica de políticas de estado para políticas de governo,
de modo que governos, como o governo Bolsonaro, atuam em sentido contrário às
leis nesse campo.
Qual o papel do governo
Bolsonaro nesse deslocamento?
O Ministério dos Direitos Humanos até mudou de nome no governo Bolsonaro e
expressa bem esse deslocamento: chama-se hoje o Ministério da Família, Mulheres
e Direitos Humanos. Sob o comando de Damares Alves, ele cumpre um papel
bastante importante na implementação de um projeto rígido e
conservador e na articulação dessas demandas em nível institucional.
Favorece uma legitimação desse debate que é agora parte das estruturas do
estado e das administrações públicas.
Quem são essas pessoas que você
pesquisou? Como se propagam ideias antigênero entre as pessoas comuns?
A pesquisa de campo tem revelado alguns contextos bastante interessantes
que mostram que o debate de gênero e sexualidade não é conhecido pela
maior parte da população. Mas há uma noção mais ou menos comum acerca da ameaça
trazida pela “ideologia de gênero”.
Minha investigação em
contextos não urbanos, não metropolitanos, tem permitido compreender como que
muitas vezes o trabalho de gênero não está acessível, mas a ideologia de gênero
consegue aglutinar. Percebe-se que as ideias antigênero fazem parte de uma agenda,
de um conjunto de campanhas e ações que apresenta transformações na ordem
dos direitos humanos. Ou seja, uma ideia forte que disputa o que
seriam os direitos humanos e os valores sociais e que se apresenta em
termos de combate. O inimigo, no caso, são o movimento LGBTs, as feministas, o
campo progressista, que operariam por mecanismos conspiratórios. Então, essa
ideia do “bem x mal” acaba sendo materializada em termos como “a ideologia da
morte” ou “a cultura da morte” versus “a ideologia da vida” e a
“cultura da vida”, de acordo com o ponto de vista conservador dessas campanhas
antigênero. O “mal” está sempre localizado fora, um elemento externo que
poderia adentrar na escola, na família, na cidade como se
fosse uma contaminação.
Essas pessoas que atuam em
campanhas antigêneros valorizam elementos fascistas, masculinistas, mas os
apoiadores dessas campanhas não são um bloco homogêneo. Pessoas que não são
necessariamente religiosas ou cristãs também as apoiam. Conseguimos
identificar sujeitos que se identificam com o campo progressista, mas que ainda
assim mantêm posicionamentos conservadores.
Há, no governo Bolsonaro, uma
aliança entre evangélicos e católicos no campo conservador. Como que ocorre na
prática essa aliança?
É possível dizer que a agenda antigênero e pró-vida no Brasil é uma agenda com
uma atuação transnacional com particularidades regionais. No caso brasileiro,
ela adentra por meio da atuação tanto de um ativismo de juízes, promotores,
psicólogos, psiquiatras, quanto por uma atuação forte da Igreja Católica e de
setores evangélicos.
Então, essas alianças entre
forças que tradicionalmente não se aliavam têm sido bastante efetivas na
atuação de campanhas antigênero e pró-vida no Congresso, no Judiciário –
sobretudo no Supremo Tribunal Federal (STF) – e agora, mais recentemente, no
Executivo federal e estadual.
Essa é uma aliança que faz
parte, na verdade, de um conjunto mais amplo de movimentos sociais
conservadores na qual há uma presença massiva de lideranças e instituições
católicas e evangélicas, mas não apenas delas. A gente pode falar de um
ativismo profissional que opera na sociedade por meio de
determinados setores que passaram a reivindicar uma leitura tradicional e
conservadora da sua própria atuação.
A Camila Rocha, cientista
política da USP, tem identificado como discurso antiaborto e o movimento
antiaborto no Brasil têm arregimentado tanto apoiadores quanto
interlocutores e atores que extrapolam os limites da religião de modo que a
gente poderia pensar essas articulações por meio do conservadorismo. De fato
não são pautas e agendas exclusivamente empenhadas por forças religiosas, muito
embora haja um preponderância dessas forças e um vocabulário utilizado que
retoma uma certa moralidade cristã como, por exemplo, esse embate do “bem x
mal”.
Vale lembrar que essa aliança
que mais recentemente tem dominado a agenda de atividades e as políticas
públicas federais é uma articulação que não surgiu no governo Bolsonaro. A
“Carta ao Povo de Deus”, assinada pela então candidata Dilma Rousseff em 2010,
fazia justamente esse movimento de apaziguamento entre o apoio dos movimentos
feministas, LGBTs, como base de sustentação política e social do governo,
frente a possibilidade de alianças e articulações com os extratos evangélicos e
católicos conservadores. Essa aliança encontra agora, no atual governo, uma
morada bastante satisfatória justamente porque tem, na própria composição
ministerial do governo, figuras que são bastante importantes e influentes no
fomento de uma retórica antigênero e no desenvolvimento de políticas nesse
sentido.
Recentemente você afirmou que
“o engajamento das pessoas comuns nessas narrativas diabólicas e antigênero não
é burrice, não é fé cega, não é influência do zap apenas”. Você poderia
explicar mais?
Enxergar o fenômeno das campanhas antigênero e dos grupos pró-vida somente
pelo viés individual, tachando os apoiadores de fanáticos ou de
fundamentalistas, nos faz perder de vista as articulações nacionais e
transnacionais que constituem esses movimentos. Houve manifestações tanto de
lideranças políticas quanto de instituições conservadoras pró-vida defendendo o
direito às duas vidas no caso da menina do Espírito Santo.
É importante entender que elas
não se colocam simplesmente contra os direitos – quem tem afirmado com bastante
contundência é a Sonia Correia e o Sexuality Policy Watch, o SPW. O que
esses grupos propõem é uma interpretação alternativa do que seriam os direitos
humanos, uma interpretação centrada nas categorias vidas e família.
Na sua avaliação, qual é o
papel da Damares Alves no governo Bolsonaro?
A Damares foi uma certa surpresa para setores do campo progressista. Muita
gente se perguntou como uma assessora do Magno Malta, que era o
cotado para a pasta, pôde substituir o próprio cotado e se transformar na
ministra dos Direitos Humanos. Mas quem acompanha a trajetória dela há algum
tempo percebe que a construção da reputação da Damares começa pelo menos uma
década antes com a fundação da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos
(Anajure), em 2012, e que passa desde então a ter uma atuação
bastante importante no lobby, tanto no STF quanto Congresso Nacional para
barrar projetos relacionados a direitos sexuais reprodutivos, direitos de
gênero e sexualidade e tentar implementar uma agenda política centrada numa
moralidade cristã. A Anajure, o berço político da Damares, participou nos
últimos anos de uma série de debates fundamentais a respeito desses temas, como
o debate de aborto de anencéfalos, o estatuto de nascituros, a utilização de
células-tronco para pesquisa, a possibilidade da eutanásia.
A Damares exerce um papel
central no governo por sua capacidade de aglutinar grupos e setores distintos
que vão além dos neopentecostais. Ela aglutina diferentes atores por meio
de uma base conservadora, por meio da legitimação de um discurso preconceituoso
e do combate ao direitos de gênero e sexualidade e da produção de uma
moral e de uma ética conservadora. Durante muitos anos, as pessoas não podiam
ser reconhecidas assim sem serem pelo menos questionadas. Hoje há
uma chance maior de os indivíduos se reconhecerem como
conservadores e cristãos de direita, e a Damares encarna essa representação.
A que você atribui o sucesso da
aprovação da Damares no governo?
Há um conjunto de fatores que explicam por que Damares se tornou tão
popular. O primeiro deles é o modo como ela se comunica, de forma acessível, de
como ela aborda temas tão complexos de modo simplificador. Essa simplificação
dos debates de gênero e sexualidade é muito operativa para se entender
dinâmicas que são complexas e ambivalentes na maior parte dos casos.
É assim que a Damares
acaba dialogando não apenas com a direita, mas com o conservadorismo que
também está presente entre pessoas identificadas com o campo
progressista. Isso é importante de ser dito porque a gente sabe que o debate de
gênero e sexualidade no Brasil não é um debate. Por mais que seja um debate
atrelado à esquerda historicamente, houve e ainda há resistência a esses temas
na esquerda.
Como ministra, a
Damares consegue ser muito efetiva na produção de uma militância
conservadora. A atuação da Damares funciona como parte importante deste nó que
conecta a implementação de projeto moral tanto de sociedade quanto de nação. É
curioso também notar que a Damares de certo modo é representante do seu próprio
discurso. Ela age como uma espécie de reserva moral do governo, nesse sentido
de aconselhar, de dar broncas como uma mãe. Percebe-se isso no vazamento do
vídeo recente sobre a reunião ministerial que a Damares não age como uma
ministra, mas parece ser uma consciência moral do governo, encarna justamente o
papel que uma mulher deveria cumprir na família.
As pautas morais por muito
tempo foram consideradas cortina de fumaça para a pauta econômica. O que você
pensa sobre isso?
Essa distinção entre pautas morais e econômicas diz mais sobre o campo
progressista, que propõe essa classificação, do que propriamente sobre
como os fenômenos ocorrem no campo conservador. A cortina de fumaça não
é uma tentativa do governo Bolsonaro de ludibriar as esquerdas com
polêmicas. A cortina de fumaça diz respeito à dificuldade de setores da
esquerda em compreender o modo como as desigualdades de classe, de gênero, de
raça e de sexualidade são operadas em mecanismos distintos de precarização da
população. As forças conservadoras não enxergam as questões morais como
questões menores ou menos importantes do que as questões econômicas, justamente
porque elas são co-dependentes.
Como se dá a articulação atual
do conservadorismo e neoliberalismo?
O neoliberalismo do jeito como tem sido desempenhado não parte só de um projeto
político e econômico, mas também de um projeto relacionado à construção de uma
subjetividade política e econômica da sociedade. Então, é importante questionar
uma cisão geralmente feita no campo liberal entre liberalismo originário e a
atuação de governos que se dizem neoliberais. Pois o projeto neoliberal de
Hayek, um dos pais da Escola Austríaca e deste movimento neoliberal, é um
projeto político e um projeto moral também. De acordo com a cientista política
Wendy Brown, ele busca manter hierarquias e faz isso por meio da negação do
social e da capacidade democrática dos estados de interferir em temas sociais
relacionados a gênero, à sexualidade, às crianças e aos adolescentes.
O neoliberalismo, o
conservadorismo ou o neoconservadorismo não se colocam como projetos distintos
ou em colisão, mas são retroalimentados um pelo outro. O conservadorismo
funciona como uma espécie de repositório moral da ética desse sujeito
neoliberal estimulado a uma hiper individualização, à competição, a
valorizar o mérito por meio da narrativa da superação pessoal. O conservadorismo
vem para repor a crença de um sujeito formatado para um sujeito self-made
man, preparado para vencer os obstáculos a partir de uma ótica individual.
Esse sistema que busca manter as coisas como elas estão favorece esse sujeito a
compreender o mundo por meio da sobrevalorização da capacidade individual em
detrimento dos laços afetivos e de solidariedade.
A racionalidade neoliberal tem
preparado terreno para a articulação de projetos conservadores e
antidemocráticos que atuam justamente no sentido da otimização da exploração do
trabalho e da destituição de um conjunto de garantias sociais para grupos
vulneráveis. As campanhas antigênero e pró-vida incorporam elementos centrais
do neoliberalismo, como a mercantilização das atividades do estado, como
educação, saúde, assistência social. Elas buscam também retirar do estado a
responsabilidade sobre essas questões.
É importante pensar que esse
conservadorismo, que tem uma influência forte cristã, mas que não é
exclusivamente cristão, é influenciado por doutrinas como a teologia do
corpo (desenvolvida pelo papa João Paulo II, que significou uma reação
católica ao avanço dos direitos de gênero e sexualidade proporcionado pelo
movimento feminista nos anos 70 e 80) e pela teologia da prosperidade, bastante
comungada por setores evangélicos. Ambas favorecem também a constituição de uma
ética conservadora, que encontra bastante afinidade com essa ética neoliberal.
Então, tanto a teologia do
corpo (por meio da valorização do papel da mulher na estrutura familiar) quanto
a teologia da prosperidade (como essa forma de alcançar o divino por meio
do desenvolvimento e da acumulação material) têm uma ligação muito forte com o
neoliberalismo por meio dessa lógica conservadora, e o conservadorismo
também encontra guarida na lógica neoliberal.
Nesse sentido é que você e a
professora e antropóloga Isabela Kalil afirmam que Paulo Guedes e Damares Alves
fazem parte de um mesmo projeto bolsonarista?
Sim. Guedes e Damares fazem parte do mesmo projeto. Seus projetos encontram não
só afinidades, mas se alimentam mutuamente. Essa divisão entre pautas morais e
pautas econômicas é uma classificação realizada pelo campo progressista, mas
não há uma mesma noção encontrada no campo conservador que, muito embora seja
formado por pessoas e grupos distintos, ainda sim acaba operando por meio de
denominadores comuns como o ataque ao estado de bem-estar social, aos direitos
sociais, ao papel do estado na interferência de assuntos que são considerados
privados. São projetos que comungam uma mesma base e um mesmo projeto político
e social de matriz autoritária, conservadora e reacionária.
Por que a família é uma unidade
central para o projeto conservador e neoliberal?
A família atua como o ente por meio do qual se terceiriza a gestão da esfera
reprodutiva e doméstica da vida. As ações do ministério da Damares terceirizam
à família um papel que caberia ao estado. Se a gente observa as duas grandes
campanhas do ministério da Damares, percebemos que ambas atuam
terceirizando à família aquilo que deveria ser responsabilidade do
estado. Uma campanha está relacionada à educação gestada pela família, o homeschooling,
e a outra é a de abstinência sexual para jovens e adolescentes. A família passa
a ocupar um papel de gestora da moral e da ética implicada nessas atividades.
É curiosa também a recente
campanha que Damares realizou sobre o uso de máscara. Ela faz uma campanha
direcionada a jovens e adolescentes, e o prêmio para o autor da máscara mais
criativa era uma passagem para Brasília para conhecer a ministra Damares e a
primeira-dama, tratada com muito deboche pela esquerda. A campanha de abstinência
sexual, também tratada por alguns setores do campo progressista como
absurda, encontra muita ressonância em pais e mães preocupados em
valorizar a sua atividade parental para combater os males aos quais os
filhos estariam submetidos.
Desses males, a gente pode
elencar a violência, o uso de drogas e, mais recentemente, a ideologia de
gênero. A ideologia de gênero tem sido um modo por meio do qual esses debates
acerca da sexualidade se comunicam com as pessoas, faz elas pensarem: será que
eu estou cuidando bem do meu filho? Será que eu estou sendo um bom pai ou uma
boa mãe se eu não estiver de alguma forma combatendo o discurso de gênero e
sexualidade capaz de contaminar o meu filho? É por meio dessa lógica também que
a família passa a ser importante para o projeto neoliberal e
conservador.
Fora do brasil, como você
enxerga a articulação do ultraliberalismo e do conservadorismo. É uma tendência
da nova direita globalmente? Como e quando emergem a política antigênero?
As campanhas antigênero e pró-vida surgem numa formulação intensa de setores
ultraconservadores do Vaticano ao longo dos anos 70 e 80, como uma reação aos
movimentos feminista, LGBT, pela saúde sexual e reprodutiva. Esses movimentos
estavam com algum êxito emplacando legislações nacionais e infuenciando o
sistema global de proteção, por meio da ONU e suas agências.
No Brasil, antes da
Constituinte, já havia um processo de articulação do movimento homossexual, à
época assim denominado, que buscava inserir o termo orientação sexual na
Constituição, no parágrafo que previa as garantias individuais. Mas o termo não
foi inserido por causa da articulação de grupos religiosos conservadores. A
democracia brasileira já se inicia sem essa proteção às pessoas LGBT, fruto de
uma oposição articulada às pressas, mas muito efetiva.
Nos Estados Unidos ocorreu
a criação de algumas entidades ao longo dos anos 70 e 80 já focadas na
valorização da vida por meio da proposição desse vocabulário que entende os
direitos de gênero e sexualidade como direitos que corrompem a vida e valorizam
a morte, por causa da defesa do aborto. Então são entidades que a Camila
Rocha tem pesquisado em artigos como “Women Life International”
ou a “40 days for life”, entidade que faz campanha em hospitais que
fazem aborto e que no ano passado fez uma ação em frente ao Hospital
Pérola Byington. Também tem outras entidades como “American United For
Life” e associações nacionais pró-vida que surgem no Brasil ao longo
dos anos 90 com uma interpretação conservadora que valoriza uma
re-ideologização da diferença sexual entre as pessoas.
Em nível global, a gente tem
uma série de encontros que marcam a inscrição do gênero e da sexualidade na
ordem de proteção dos direitos humanos – particularmente a conferência do Cairo
em 1994, que discutiu sobre os direitos reprodutivos, e a conferência de Pequim
no ano seguinte, que se assenta a noção de direitos sexuais. São eventos
lembrados como uma conquista dos movimentos sociais feministas e LGBT, mas que
foram marcados por fortes oposições e pela produção de uma interpretação
teológica, que busca compreender esses direitos a partir de uma ótica
conservadora.
A ideia da ideologia de gênero
é bastante circunscrita a um contexto específico do Vaticano. O Cardeal
Ratzinger, antes de se tornar Papa Bento XVI, se dedicava fortemente a
construção de um arco, teórico, analítico, teológico e católico direcionado a
compreender o fenômeno do gênero e da sexualidade. Então é aí que surge a
produção da ideologia do gênero – de fato uma produção, porque a palavra foi
testada em uma série de ocasiões. São dezenas de termos que foram elencados
para poder descrever o que seria o gênero e a sexualidade, teoria do gênero
diverso, teoria do gênero queer. Ideologia de gênero acaba sendo a palavra
escolhida. A primeira vez que ela aparece em um documento foi em 1997 no
livro da escritora Dale O’Leary chamado “The Gender Agenda”, que tenta
demonstrar o que seria a perspectiva do gênero e a atuação de movimentos
feministas e LGBT. O que tem ocorrido também é a utilização de
um vocabulário científico para validar posições conservadoras e cristãs sobre
concepção, identidade de gênero, orientação sexual, maternidade, estupro.
Como seu trabalho de campo, somado a sua
militância, pode ajudar a iluminar o debate progressista na compreensão da nova
direita, no que estamos errando?
Entender como essas agendas antigênero e pró-vida não são exclusivamente
religiosas, mas trazem diversos de atores que convergem na defesa
de um projeto de país onde o aborto, mesmo nas raras situações que ele é
legalizado, é questionado. Isso desperta a necessidade de uma atuação que não
se valha apenas de posicionamentos defensivos ou posteriores. É preciso encarar
os debates de gênero e sexualidade como pautas importantes porque
está ocorrendo no Brasil um desmonte da democracia, uma precarização
dos laços sociais e consolidação de um projeto político autoritário e
conservador.
Fonte: The Intercept Brasil, em 1 de setembro de 2020.