La mujer más hermosa de la ciudad
"Cass era la más joven y hermosa de cinco hermanas. Cass era la mujer más hermosa de la ciudad. Medio india, con un cuerpo flexible y extraño, un cuerpo fiero y serpentino y ojos a juego. Cass era fuego móvil y fluido. Era como un espíritu embutido en una forma incapaz de contenerlo. Su pelo era negro y largo y sedoso y se movía y se retorcía igual que su cuerpo.
[...] Sus hermanas la acusaban de desperdiciar su belleza, de no utilizar lo bastante su inteligencia, pero Cass poseía inteligencia y espíritu; pintaba, bailaba, cantaba, hacía objetos de arcilla, y cuando la gente estaba herida, en el espíritu o en la carne, a Cass le daba una pena tremenda. Su mente era distinta y nada más; sencillamente, no era práctica. Sus hermanas la envidiaban porque atraía a sus hombres, y andaban rabiosísimas porque creían que no les sacaba todo el partido posible. Tenía la costumbre de ser buena y amable con los feos; los hombres considerados guapos le repugnaban: 'No tienen agallas - decía ella -. No tienen nervio. Confían siempre en sus orejitas perfectas y en sus narices torneadas… todo fachada y nada dentro [...]"
Charles Bukowski
Cass de Bukowski, a bela mestiça que esculpia gárgulas em seu corpo
A mistura de traços étnicos lavrou na pequena
Cass uma beleza invulgar. Por inveja ou cobiça, a beleza extraordinária de Cass,
converteu seus dias em permanente tormenta. Na prateleira do mercado sexual,
forjada a ferro e fogo por velhos patriarcas, os atributos físicos de Cass a
colocava na estante mais alta.
O titulo de mais bela da cidade não agradava
Cass, ao contrário, se enfurecia quando sua existência era limitada, restrita à beleza física. Se seu espírito
fluido e flamejante não era capaz de se conter nos limites do próprio corpo,
que dirá se conformar a padrões que esquadrinhavam valores em uma mulher.
De pequena já era brigona! Indomável,
enfrentava a punhos nus os costumeiros ataques das colonizadas que enxergavam
na beleza de Cass um obstáculo real a uma melhor colocação na prateleira de mulheres
mercadoria. Para se defender das
invejosas, que se criam rivais, ou dos homens que a cobiçavam, Cass lançava mão de
suas táticas de guerrilha. Resistia à conformação de sua complexa identidade e às
ofensivas contra a autonomia de seus desejos com táticas de combate baseadas na
velocidade, surpresa e o horror. Pontas de alfinetes e arestas de garrafas de vidro
quebradas eram as matérias prima de seu tomahawk*. Cass,
mesmo sem cavalos pintados em zig zag, era hábil na arte da emboscada e dos
ataques relâmpagos.
Como flecha certeira, certa vez um nativo
usou a flor como metáfora elucidativa para diferenciar os peles vermelhas dos
caras pálidas. O primeiro vê a flor no meio da mata, aprecia e a deixa no mesmo
lugar para que viva siga encantando a todos que passarem por ela. O segundo vê
e antes que outro a veja, a arranca de seu lugar, matando-a, para coloca em
um vaso e dizer que a flor é sua, que a possui. Para os homens daquela cidade, a
beleza esplêndida de Cass não era só de se admirar. Não mesmo! Semelhante às
terras de seus antepassados, o corpo de Cass era território a ser invadido,
expropriado e consumido. Na cidade de Cass, como no resto do mundo, não existia
título de propriedade privada para corpos femininos.
A gente anda sempre me acusando de ser
bonita, insurgiu Cass às primeiras observações do homem que acabara de eleger no
bar West End. E mesmo este que lhe agradou logo de cara, por princípio não lhe daria
trégua, não permitiria que a julgasse apenas pela aparência. A beleza para ela
era nada, “orelhinhas perfeitas e narizes torneados era tudo fachada, nada por
dentro”.
Intensidade, vastidão e profundidade eram o
que Cass esperava reconhecer no espelho dos olhos alheios, título de beleza não
era sua ambição. Para proteger o que lhe era verdadeiramente sagrado, passou a
esculpir figuras horrendas na única catedral que possuía. As feridas talhadas em
sua pele cumpriam a função das gárgulas medievais: assustavam os demônios que a
queriam devorar sem considerar o seu próprio desejo.
Desgraçadamente, o último guardião do templo
esculpido por Cass a levou para sempre. Inconsolável, o amante de cara fascinante - único na
cidade que se aproximou da essência de Cass, pôs-se a listar os costumeiros “se”
de quem fica:
- E se o homem com sua engenhosidade criassem
alfinetes de metal tão flexível que jamais pudesse perfurasse a pele de Cass?
- E se o mais talentoso dos mestres vidreiros
desenvolvesse garrafas que se quebrassem sempre em cacos curvilíneos como
pétalas de rosa?
Malditos sejam! Há tempos sabemos que não
será a tecnologia que salvará a sensibilidade.
- Então, se desde muito pequenos educássemos
os meninos para que eles soubessem, sem titubearem um único segundo, que dentro
de um corpo de mulher, bem ali entre os seios bate um coração delicado como flores
selvagens?
- Para onde poderia fugir com Cass? Em que
canto do mundo, abaixo de qual bandeira, regida por qual carta magna uma cidade
permitiria que um ser esplêndido como Cass existisse sem que ela precisasse se
encolher, se mutilar para não ser consumida?
Cida Alves
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“Cass de Bukowski, a bela mestiça que esculpia gárgulas em seu corpo” é mais uma narrativa que compõe o projeto “Resistentes Insanas”. Por intermédio da integração de linguagens, a performance "Resistente Insanas" dramatiza personagens femininas fantásticas que ilustram a dimensão da crueldade da opressão patriarcal sobre as mulheres fortes, sábias e encantadoras.
Foto: Clara
Alves, alvorecer no Morro do Além – Goiânia, 27 de agosto de 2018.
*machadinha dos
índios sioux.