“Sem meu conhecimento ou meu consentimento tive minha primeira experiência sexual quando estava no jardim de infância. Você usou meu corpo por seis anos pra se satisfazer sexualmente. (…) criou uma fratura gigante entre mim e minha família. (…) Sempre que a gente brigava meu pai me dizia: ‘você precisa pedir desculpas pro Larry’. O que mais me machucou foi ver o momento em que meu pai percebeu o que tinha acontecido. Nós dois tentamos de tudo para reconstruir a nossa relação até que ele suicidou em 2016.” – Kyle Stephens
“Ninguém estava preocupado se a gente estava sendo abusada.” – Jordyn Wieber“Seus abusos começaram há 30 anos. Se em todo esse tempo apenas um adulto ouvisse, e tivesse a coragem e o caráter de agir, essa tragédia seria evitada.” – Aly Raisman“Larry abusou sexualmente de mim repetidas vezes, com a desculpa de ser médico, por um ano. E fez isso com a minha mãe no quarto. Ele teve o cuidado de bloquear a visão dela para que ela não visse o que ele estava fazendo. Eu não sabia que ao mesmo tempo em que Larry abusava de mim, a Federação de Ginástica dos Estados Unidos enterrava relatórios sobre casos de abuso, criando uma cultura de predadores de crianças.” – Rachael Denhollander“Como eu deveria saber, aos 13 anos, o que era medicamente aceitável e quais eram os limites?” – Kara Johnson“A escola que eu amava e confiava teve a audácia de me dizer que eu não entendia a diferença entre abuso sexual e procedimentos médicos.” – Amanda Thomashow
“Durante os tratamentos, ele mantinha uma mão na parte inferior das minhas costas, massageando, e a outra entre as minhas pernas, com seus dedos dentro de mim. Eu chorava, porque doía, mas ele dizia que precisava enfiar bastante.” – Clasina Syrovy
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Imagine um lugar com 156
crianças. Um daqueles pátios de escola barulhentos e quase insuportáveis de se
estar por muito tempo. Cento e cinquenta e seis meninas. Todas elas com o sonho
de se tornarem atletas olímpicas da equipe dos Estados Unidos – de
transformarem suas vidas, ganhar medalhas, subir em pódios no mundo todo, dar
orgulho para suas famílias e para o seu país. Todas elas contando com a ajuda
de um mesmo médico, a pessoa contratada pela Federação Americana de Ginástica
que poderia garantir sua excelência no esporte: Larry Nassar.
Esse médico tratou essas meninas, criou laços com
suas famílias, ganhou sua confiança e passou a fazer parte de suas vidas. E
então passou a abusar sexualmente de cada uma delas, repetidamente por três
décadas. E o abuso, que acontecia durante as consultas médicas, não era algo
claro para crianças ou adolescentes. Hoje ainda não falamos de sexo com as
crianças de maneira que elas fiquem seguras para discernir o que pode e o que
não pode ser feito com seus corpos, imagina como isso era feita há 15 ou 20
anos…
Larry não era apenas o médico, mas um amigo da
família, assim como 60% dos abusadores sexuais de crianças nos
Estados Unidos e 32,2% no Brasil: são cuidadores, babás, médicos,
vizinhos, tios, padrastos, aquelas pessoas a quem você confia a guarda de seus
filhos. E é aí que mora o perigo: como você vai desconfiar de alguém assim?
Como vai acreditar no que diz uma criança – quando
diz – que é cheia de imaginação e pode estar confundindo as coisas? Como você
vai colocar a vida de um homem adulto, prestigiado, de quem você gosta, em
risco porque uma criança acha que pode estar sendo tratada de maneira imprópria?
A cultura criada em nossas sociedades nos leva a esse caminho sem volta.
Não ouvir é a regra.
Cento e cinquenta e seis meninas da ginástica
resolveram quebrar o silêncio depois que uma delas decidiu se expôr pela
primeira vez: Maggie Nichols era conhecida no processo movido contra o médico
como “Atleta A”, uma medida para preservar sua identidade. A campeã mundial em
2015 decidiu soltar uma nota revelando quem era. No mesmo ano em que foi
campeã, ela teve a coragem de denunciar o médico para a Federação. Seu
depoimento foi tomado somente três semanas depois, e foi preciso ainda mais
duas semanas e duas denúncias de outras atletas – as campeãs olímpicas Aly
Raisman e McKayla Maroney – para que a entidade acionasse o FBI. Não ouvir é a
regra.
Talvez por isso o Departamento de Justiça americano
aponte que apenas 30% dos casos de abuso sexual entre adultos são reportados às
autoridades. O número entre crianças é obviamente mais baixo. Afinal, se não
serão ouvidas, falar pra que?
Não falar sobre sexo com crianças é o maior desejo dos abusadores
pedófilos
A que número gritante isso nos leva? Em 1998, 1.8
milhão de adolescentes havia sido vítima de abuso sexual nos EUA e os dados
apontavam que uma a cada cinco meninas sofreria um estupro antes dos 18 anos.
Se os dados existem há tanto tempo, por que nada foi feito para mudar a maneira
que encaramos os abusos?
Toda a sociedade é moldada para que se proteja a
vida dos adultos, por mais que a gente adore dizer que as crianças são nossa
prioridade. Elas não são. O peso de suas falas é quase nulo. Elas não são
colocadas no mesmo patamar que os adultos, não são vistas como pessoas
completas. Elas, as mais vulneráveis entre todos nós, são descreditadas mesmo
antes de tentarem se posicionar.
Já que não temos como identificar quem serão os
abusadores, por que não educamos nossas crianças sobre sexo? Por que não
explicamos a elas os limites do toque, do contato físico? O argumento de que
falar sobre sexo com uma criança seria um desejo pedófilo é cruel e irreal. Não
falar sobre sexo com crianças é o maior desejo dos abusadores pedófilos, assim
eles podem dar ao que estão fazendo o nome que bem entenderem. Abuso vira
tratamento médico nas mãos de Larry Nassar.
Nunca vamos saber se a Federação de Ginástica dos
Estados Unidos, as escolas e os times das atletas quiseram se proteger e por
isso esconderam os casos, se seus representantes realmente não acreditavam que
algo estranho pudesse estar acontecendo ali; ou se temiam por perder os
investimentos que haviam feito nessas crianças, seus treinamentos e cuidados.
Os motivos desses abusos terem se arrastado durante anos e somado um número tão
alto de vítimas ainda são um mistério nunca serão descobertos. Mas sabemos que
houve negligência. E isso é crime. Não é apenas Larry Nassar que deveria estar
preso, mas cada uma das pessoas que se recusou a levar em frente as denúncias
que as jovens atletas tentaram fazer.
Esse texto não dará a resposta do motivo pelo qual
nada aconteceu, mas pode oferecer caminhos para que não aconteça novamente: a
cultura do estupro, a fetichização de corpos infantilizados, a objetificação
feminina e a sensação de que a mulher pode ser violada sem que nada aconteça
precisam acabar. Ou então vamos ver outros casos como esse, outras vidas sendo
destruídas e outros agressores acreditando que não fizeram nada de errado.
Foto do título: Dmitri Lovetsky - Simone Biles na final da ginástica artística nas Olimpíadas do Rio. Foto
tirada em 15 de agosto
Fonte: The Intercept Brasil, em 2 de fevereiro de 2018.
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