2 de dez. de 2017

A calda escarlate de Yara, uma alegoria da Injustiça - Cida Alves e Cecília Alves




Enquanto não se faz Justiça, a calda escarlate de Yara* denunciará que corre sangue nas águas dos Rios Negro e Solimões.



Lenda da Yara, duas versões:


“Yara, a jovem Tupi, era a mais formosa mulher das tribos que habitavam ao longo do rio Amazonas. Por sua doçura, todos os animais e as plantas a amavam. Mantinha-se, entretanto, indiferente aos muitos admiradores da tribo. Numa tarde de verão, mesmo após o Sol se pôr, Yara permanecia no banho, quando foi surpreendida por um grupo de homens estranhos. Sem condições de fugir, a jovem foi agarrada e amordaçada. Acabou por desmaiar, sendo, mesmo assim, violentada e atirada ao rio. O espírito das águas transformou o corpo de Yara num ser duplo. Continuaria humana da cintura para cima, tornando-se peixe no restante. Yara passou a ser uma sereia, cujo canto atrai os homens de maneira irresistível. Ao verem a linda criatura, eles se aproximam dela, que os abraça e os arrasta às profundezas, de onde nunca mais voltarão” (Lendas indígenas, texto adaptado do livro: "Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros" FTD Editora - Walde-Mar de Andrade e Silva)



“Iara antes de ser sereia era uma índia guerreira, a melhor de sua tribo. Seus irmãos ficaram com inveja de Iara pois só ela recebia elogios de seu pai que era pajé, e um dia eles resolveram tentar matá-la. De noite quando Iara estava dormindo seus irmãos entraram em sua cabana, só que como Iara tinha a audição aguçada os ouviu e teve que matá-los para se defender e, com medo de seu pai, fugiu. Seu pai propôs uma busca implacável por Iara. E conseguiram pegá-la; como punição Iara foi jogada bem no encontro do rio Negro com Solimões. Os peixes a trouxeram à superfície e de noite a lua cheia a transformou em uma linda sereia, de longos cabelos e olhos verdes” (site AmazoniaViva)






Yara, cobiçada por sua beleza e doçura ou invejada por sua força e habilidades guerreiras, violada por estranhos (estupro coletivo) ou traída pelos irmãos e injustiçada pelo pai foi condenada a morrer nas águas do rio (feminicídio). Os homens de sua terra a mataram por suas mais preciosas qualidades, os peixes, a lua e o espírito do rio tentaram dar-lhe um sopro de justiça dividindo como ela os elementos dos seres do rio, calda, escamas e nadadeiras. Mas o corpo meio humano guardou as lembranças das violências sofridas, ele sempre guarda! 

A Yara não seria possível nenhuma forma de vida plena, nem mulher, nem peixe. Dividida, incompleta, mutilada, inumana se converteu em um ser vingativo, de ódio descolado. Sua calda é ferida encarnada, seu vermelho reluzente a faz lembrar a todo instante que os culpados por seu martírio jamais foram condenados. Sem o bendito bálsamo da Justiça, Yara em um desatino sem fim utiliza os atributos que a destruiu como atrativos para afogar todos os homens que se aproximam de seu mundo fluido.






A lenda da Yara é uma alegoria de que os injustiçados tendem a carregar suas dores como estandartes, pois assim impedem que as violências sofridas sejam apagadas pelo tempo da impunidade e para que os acomodados, coniventes e covardes enfrentem dia a dia a grandeza de suas feridas.

A Justiça, mais que o perdão, é uma das forças propulsoras da elaboração dos traumas. A responsabilização dos autores de violências é fator de proteção à saúde mental das vítimas. 





Pela Justiça, afirmação pública de que as violências sofridas não são toleradas, a vítima recebe simbolicamente o reconhecimento, a legitimação de que a dor da violação é um ultraje à sua condição humana. O reconhecimento, profundamente sincero, da dor vivida na situação traumática e a responsabilização dos perpetradores desobriga a vítima da árdua luta de provar o seu sofrimento. Desobrigada, a vítima pode então voltar sua energia vital para outros empreendimentos e realizações, como por exemplo ser feliz!
 



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Texto: Cida Alves
Foto: Cecília Alves – Fazenda Santa Branca, Goiás, 29 de novembro de 2017.

*Yara e sua calda de sangue é a primeira protagonista do ensaio fotográfico “Resistentes Insanas” - lendas ou personagens femininas que ilustram a dimensão da crueldade da opressão patriarcal sobre as mulheres fortes, poderosas e encantadoras.

Atenção: para aprofundar os estudos dos conceitos tratados no texto acima, recomendo a leitura das obras de Hannad Arendt, Alice Miller e Pepa Horno Goicoechea.
 

Um comentário:

  1. Parabéns pela matéria, ensaio e projeto. Estou pesquisando o tema para um trabalho acadêmico sobre mitos na antropologia. Penso em relacionar este mito com o da Medusa, um caso que envolve estupro, culpabilização da mulher e injustiça. O material foi muito útil, obrigado!

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