Por Alice Miller
Em 1994, a polícia de Boston chocou-se ao descobrir um menino de quatro anos de idade, desnutrido e trancado num apartamento imundo de Roxbury, onde vivia em condições pavorosas. Pior, as mãozinhas da criança tinha sido horrivelmente queimadas. Soube-se que a mãe, viciada em drogas, tinha posto as mãos do menino sob a torneira de água fervente para castigá-lo por ter consumido a comida do namorado. A criança ferida não tivera nenhum tipo de assistência médica. A história pertubadora chegou rapidamente às manchetes.
Adotado, o menino recebeu enxertos de pele para ajudar as mãos machucadas a recuperar suas funções. Mas, embora as feridas físicas da vítima tenham sido tratadas, descobertas recentes indicam que ferimentos infligidos à sua mente em desenvolvimento podem nunca cicatrizar de todo. Ainda que seja um exemplo extremo, esse caso notório infelizmente não é incomum. A cada ano, as agências de bem-estar do menor dos EUA recebem mais de três milhões de denúncias de abuso e negligência no trato de crianças, e levantam evidências suficientes para substanciar mais de um milhão de casos.
Não é surpresa para nós que as pesquisas revelem um forte laço entre maus tratos físicos, sexuais e emocionais e o desenvolvimento de problemas psiquiátricos. Mas, até o início dos anos 90, profissionais da área de saúde mental acreditavam que as dificuldades emocionais e sociais ocorriam principalmente por meios psicológicos. Os maus tratos na infância eram vistos como causadores do desenvolvimento de mecanismos de defesa intra-psíquicos responsáveis pelo fracasso do indivíduo na idade adulta. Ou como paralisadores do desenvolvimento psicossocial, mantendo a vítima presa à condição de “criança ferida”. Os pesquisadores achavam que os danos eram basicamente um problema de solfware, tratáveis como uma reprogramação via terapia, ou que podiam simplesmente ser apagados com exortações do tipo “esqueça” ou “supere”.
Novas investigações sobre as consequências dos maus tratos na infância, incluindo o trabalho no McLean Hospital em Belmont, Massachusetts, e na Harvard Medical School, parecem contar uma história diferente. Como o abuso infantil ocorre durante o período formativo crítico em que o cérebro está sendo fisicamente esculpido pela experiência, o impacto do extremo estresse pode deixar uma marca indelével em sua estrutura e função. Tais abusos, parece, induzirem a uma cascata de efeitos moleculares e neurobiológicos, que alteram de modo irreversível o desenvolvimento neuronal.
Personalidades extremas
O efeito do abuso infantil pode manifestar-se de várias formas, em qualquer idade. Internamente, pode aparecer como depressão, ansiedade, pensamento suicidas ou estresses pós-traumáticos; podem também expressar-se externamente como agressão, impulsividade, delinqüência, hiperatividade ou abuso de substâncias. Uma condição psiquiátrica fortemente associada a maus tratos na infância é o chamado distúrbio de personalidade limítrofe (borderline personality disorder). O indivíduo com essa disfunção tem como característica enxergar os outros em termos de preto e branco, oito ou oitenta, muitas vezes colocando seus interlocutores num pedestal, para depois transformá-los em vilões, a partir de algo percebido como desfeita ou traição. Aqueles que sofrem desse distúrbio são propensos a explosões de cólera e episódios transitórios de paranóia ou psicose. Eles possuem tipicamente uma história de relações intensas e instáveis, muitas vezes tentam escapar por meio do abuso de substâncias, e apresentam impulsos autodestrutivos ou suicidas.
Ao tratar três pacientes com distúrbio de personalidade limítrofe, em 1984, comecei a suspeitar que a exposição precoce a várias formas de maus tratos havia alterado o desenvolvimento de seus sistemas límbicos. O sistema límbico é uma série de núcleos cerebrais interconectados (centros neurais), que desempenham papel central na regulação da emoção e da memória. Duas regiões límbicas criticamente importantes são o hipocampo e a amígdala, localizados abaixo do córtex, no lobo temporal. Acredita-se que o hipocampo seja importante na formação e recuperação tanto da memória verbal quanto da emocional, enquanto a amígdala está ligada à criação do conteúdo emocional da memória como sentimentos relacionados ao medo e reações agressivas.
Os profissionais do hospital McLean, se perguntaram se o abuso infantil não poderia prejudicar o amadurecimento saudável dessas regiões do cérebro. Os maus tratos na infância poderiam estimular as amígdalas a um estado de irritabilidade elétrica elevada ou danificar o hipocampo em desenvolvimento por meio de uma exposição excessiva aos hormônios do estresse? Foram mais longe, refletindo se danos ao hipocampo ou superexcitação da amígdala não poderiam produzir sintomas semelhantes aos de pacientes com epilepsia de lobo temporal (ELT), que esporadicamente perturba as funções desses núcleos do cérebro. Durante os ataques de ELT, os pacientes permanecem conscientes, enquanto sofrem um leque de sintomas psicomotores causados por tempestades elétricas nessas regiões. Efeitos associados incluem o desencadeamento abrupto de formigamentos, entorpecimentos ou vertigem; manifestações como olhar fixamente ou contorcer-se e sintomas, como enrubescimento, náusea ou a sensação de “frio no estômago” que se tem num elevador de alta velocidade.
A ELT pode também causar alucinações. Para explorar a relação entre o abuso precoce e disfunção do sistema límbico, idealizei, em 1984, uma lista de perguntas para medir a freqüência com que os pacientes apresentavam sintomas semelhantes aos de ELT. Em 1993, meus colegas e eu computamos as respostas de 253 adultos. Pouco mais da metade relatou ter sido vítimas de abusos físicos ou sexuais ou ambos, quando crianças. Comparados com os pacientes que relataram maus tratos, a média de pontos da checagem foi de 38% maior em vítimas de abuso físico (mas não sexual) e 49% mais elevada em vítimas de abuso sexual (mas não físico). Os indivíduos que admitiram tanto abusos físicos quanto sexuais tiveram pontuação 113% maior que os que não relataram nenhum tipo de abuso. Maus tratos sofridos antes dos 18 anos tiveram mais impacto do que os ocorridos em idade posterior, e homens e mulheres foram afetados de modo semelhante.
Em 1994, nossa equipe do McLean procurou apurar se o abuso físico, sexual ou psicológico estava associado a anormalidades das ondas cerebrais em eletroencefalogramas (EEGS), que possibilitavam uma medida mais direta da irritabilidade límbica do que a checagem. Em busca dessa conexão, revisamos as fichas de 115 admissões consecutivas num hospital psiquiátrico para crianças e adolescentes. E encontramos anormalidades significativas de ondas cerebrais em 54% dos pacientes com histórico de trauma precoce, mas em apenas 27% dos pacientes que não tinham sofrido abusos.
Observamos anomalias nos EEGS de 72% daqueles que haviam documentado histórias de abusos físicos e sexuais sérios. As irregularidades apareceram nas regiões frontal e temporal do cérebro e, para nossa surpresa, envolviam especificamente o hemisfério esquerdo ao invés dos dois lados, como seria de se esperar.
Em 1997, J. Douglas Bremer, na época na Escola de Medicina de Yale, e seus colegas, compararam as escanerizações por ressonância magnética feitas em 17 adultos submetidos a abusos físicos ou sexuais na infância, todos eles portadores de distúrbio de estresse pós-traumático, com as imagens de 17 pessoas saudáveis, que correspondiam aos doentes em idade, sexo, raça e outras características. Os hipocampos esquerdos das vítimas de abuso com distúrbio de estresse pós-traumático eram, em média, 12% menores que os do grupo de controle, mas os hipocampos direitos tinham tamanho normal. Como seria de se esperar, dado o papel importante do hipocampo na função da memória, a pontuação desses pacientes também foi menor em testes de memória verbal do que a do grupo que não sofreu abusos.
Em 2001, Martin Driessen, do Gilead Hospital, em Bielefeld, Alemanha, e seus colegas relataram uma redução de 16% no tamanho do hipocampo e de 8% no tamanho da amígdala em mulheres adultas com personalidade limítrofe e um histórico de maus tratos na infância. Por outro lado, em 1999, quando Michael De Bellis e seus colegas, da Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh, mediram cuidadosamente imagens de ressonância magnética dos hipocampos de 44 crianças maltratadas portadoras de distúrbio de estresse pós-traumático e de 61 crianças saudáveis do grupo de controle, eles não observaram uma diferença significativa no volume.
Recentemente, Susan Andersen, Ann Polcari e eu obtivemos resultados em nossa análise volumétrica dos hipocampos de 18 adultos jovens (de 18 a 22 anos de idade), com um histórico de repetidos abusos sexuais forçados, acompanhados de medo ou terror que foram comparados a 19 jovens saudáveis da mesma idade. Ao contrário de estudos anteriores, os participantes do grupo de controle não eram pacientes, mas pessoas recrutadas entre público em geral.
Em 1994, a polícia de Boston chocou-se ao descobrir um menino de quatro anos de idade, desnutrido e trancado num apartamento imundo de Roxbury, onde vivia em condições pavorosas. Pior, as mãozinhas da criança tinha sido horrivelmente queimadas. Soube-se que a mãe, viciada em drogas, tinha posto as mãos do menino sob a torneira de água fervente para castigá-lo por ter consumido a comida do namorado. A criança ferida não tivera nenhum tipo de assistência médica. A história pertubadora chegou rapidamente às manchetes.
Adotado, o menino recebeu enxertos de pele para ajudar as mãos machucadas a recuperar suas funções. Mas, embora as feridas físicas da vítima tenham sido tratadas, descobertas recentes indicam que ferimentos infligidos à sua mente em desenvolvimento podem nunca cicatrizar de todo. Ainda que seja um exemplo extremo, esse caso notório infelizmente não é incomum. A cada ano, as agências de bem-estar do menor dos EUA recebem mais de três milhões de denúncias de abuso e negligência no trato de crianças, e levantam evidências suficientes para substanciar mais de um milhão de casos.
Não é surpresa para nós que as pesquisas revelem um forte laço entre maus tratos físicos, sexuais e emocionais e o desenvolvimento de problemas psiquiátricos. Mas, até o início dos anos 90, profissionais da área de saúde mental acreditavam que as dificuldades emocionais e sociais ocorriam principalmente por meios psicológicos. Os maus tratos na infância eram vistos como causadores do desenvolvimento de mecanismos de defesa intra-psíquicos responsáveis pelo fracasso do indivíduo na idade adulta. Ou como paralisadores do desenvolvimento psicossocial, mantendo a vítima presa à condição de “criança ferida”. Os pesquisadores achavam que os danos eram basicamente um problema de solfware, tratáveis como uma reprogramação via terapia, ou que podiam simplesmente ser apagados com exortações do tipo “esqueça” ou “supere”.
Novas investigações sobre as consequências dos maus tratos na infância, incluindo o trabalho no McLean Hospital em Belmont, Massachusetts, e na Harvard Medical School, parecem contar uma história diferente. Como o abuso infantil ocorre durante o período formativo crítico em que o cérebro está sendo fisicamente esculpido pela experiência, o impacto do extremo estresse pode deixar uma marca indelével em sua estrutura e função. Tais abusos, parece, induzirem a uma cascata de efeitos moleculares e neurobiológicos, que alteram de modo irreversível o desenvolvimento neuronal.
Personalidades extremas
O efeito do abuso infantil pode manifestar-se de várias formas, em qualquer idade. Internamente, pode aparecer como depressão, ansiedade, pensamento suicidas ou estresses pós-traumáticos; podem também expressar-se externamente como agressão, impulsividade, delinqüência, hiperatividade ou abuso de substâncias. Uma condição psiquiátrica fortemente associada a maus tratos na infância é o chamado distúrbio de personalidade limítrofe (borderline personality disorder). O indivíduo com essa disfunção tem como característica enxergar os outros em termos de preto e branco, oito ou oitenta, muitas vezes colocando seus interlocutores num pedestal, para depois transformá-los em vilões, a partir de algo percebido como desfeita ou traição. Aqueles que sofrem desse distúrbio são propensos a explosões de cólera e episódios transitórios de paranóia ou psicose. Eles possuem tipicamente uma história de relações intensas e instáveis, muitas vezes tentam escapar por meio do abuso de substâncias, e apresentam impulsos autodestrutivos ou suicidas.
Ao tratar três pacientes com distúrbio de personalidade limítrofe, em 1984, comecei a suspeitar que a exposição precoce a várias formas de maus tratos havia alterado o desenvolvimento de seus sistemas límbicos. O sistema límbico é uma série de núcleos cerebrais interconectados (centros neurais), que desempenham papel central na regulação da emoção e da memória. Duas regiões límbicas criticamente importantes são o hipocampo e a amígdala, localizados abaixo do córtex, no lobo temporal. Acredita-se que o hipocampo seja importante na formação e recuperação tanto da memória verbal quanto da emocional, enquanto a amígdala está ligada à criação do conteúdo emocional da memória como sentimentos relacionados ao medo e reações agressivas.
Os profissionais do hospital McLean, se perguntaram se o abuso infantil não poderia prejudicar o amadurecimento saudável dessas regiões do cérebro. Os maus tratos na infância poderiam estimular as amígdalas a um estado de irritabilidade elétrica elevada ou danificar o hipocampo em desenvolvimento por meio de uma exposição excessiva aos hormônios do estresse? Foram mais longe, refletindo se danos ao hipocampo ou superexcitação da amígdala não poderiam produzir sintomas semelhantes aos de pacientes com epilepsia de lobo temporal (ELT), que esporadicamente perturba as funções desses núcleos do cérebro. Durante os ataques de ELT, os pacientes permanecem conscientes, enquanto sofrem um leque de sintomas psicomotores causados por tempestades elétricas nessas regiões. Efeitos associados incluem o desencadeamento abrupto de formigamentos, entorpecimentos ou vertigem; manifestações como olhar fixamente ou contorcer-se e sintomas, como enrubescimento, náusea ou a sensação de “frio no estômago” que se tem num elevador de alta velocidade.
A ELT pode também causar alucinações. Para explorar a relação entre o abuso precoce e disfunção do sistema límbico, idealizei, em 1984, uma lista de perguntas para medir a freqüência com que os pacientes apresentavam sintomas semelhantes aos de ELT. Em 1993, meus colegas e eu computamos as respostas de 253 adultos. Pouco mais da metade relatou ter sido vítimas de abusos físicos ou sexuais ou ambos, quando crianças. Comparados com os pacientes que relataram maus tratos, a média de pontos da checagem foi de 38% maior em vítimas de abuso físico (mas não sexual) e 49% mais elevada em vítimas de abuso sexual (mas não físico). Os indivíduos que admitiram tanto abusos físicos quanto sexuais tiveram pontuação 113% maior que os que não relataram nenhum tipo de abuso. Maus tratos sofridos antes dos 18 anos tiveram mais impacto do que os ocorridos em idade posterior, e homens e mulheres foram afetados de modo semelhante.
Em 1994, nossa equipe do McLean procurou apurar se o abuso físico, sexual ou psicológico estava associado a anormalidades das ondas cerebrais em eletroencefalogramas (EEGS), que possibilitavam uma medida mais direta da irritabilidade límbica do que a checagem. Em busca dessa conexão, revisamos as fichas de 115 admissões consecutivas num hospital psiquiátrico para crianças e adolescentes. E encontramos anormalidades significativas de ondas cerebrais em 54% dos pacientes com histórico de trauma precoce, mas em apenas 27% dos pacientes que não tinham sofrido abusos.
Observamos anomalias nos EEGS de 72% daqueles que haviam documentado histórias de abusos físicos e sexuais sérios. As irregularidades apareceram nas regiões frontal e temporal do cérebro e, para nossa surpresa, envolviam especificamente o hemisfério esquerdo ao invés dos dois lados, como seria de se esperar.
Em 1997, J. Douglas Bremer, na época na Escola de Medicina de Yale, e seus colegas, compararam as escanerizações por ressonância magnética feitas em 17 adultos submetidos a abusos físicos ou sexuais na infância, todos eles portadores de distúrbio de estresse pós-traumático, com as imagens de 17 pessoas saudáveis, que correspondiam aos doentes em idade, sexo, raça e outras características. Os hipocampos esquerdos das vítimas de abuso com distúrbio de estresse pós-traumático eram, em média, 12% menores que os do grupo de controle, mas os hipocampos direitos tinham tamanho normal. Como seria de se esperar, dado o papel importante do hipocampo na função da memória, a pontuação desses pacientes também foi menor em testes de memória verbal do que a do grupo que não sofreu abusos.
Em 2001, Martin Driessen, do Gilead Hospital, em Bielefeld, Alemanha, e seus colegas relataram uma redução de 16% no tamanho do hipocampo e de 8% no tamanho da amígdala em mulheres adultas com personalidade limítrofe e um histórico de maus tratos na infância. Por outro lado, em 1999, quando Michael De Bellis e seus colegas, da Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh, mediram cuidadosamente imagens de ressonância magnética dos hipocampos de 44 crianças maltratadas portadoras de distúrbio de estresse pós-traumático e de 61 crianças saudáveis do grupo de controle, eles não observaram uma diferença significativa no volume.
Recentemente, Susan Andersen, Ann Polcari e eu obtivemos resultados em nossa análise volumétrica dos hipocampos de 18 adultos jovens (de 18 a 22 anos de idade), com um histórico de repetidos abusos sexuais forçados, acompanhados de medo ou terror que foram comparados a 19 jovens saudáveis da mesma idade. Ao contrário de estudos anteriores, os participantes do grupo de controle não eram pacientes, mas pessoas recrutadas entre público em geral.
*Alice Miller é psicanalista, doutora em filosofia, psicologia e sociologia
www.alicemiller.com.
Transcrito da publicação Não bata, eduque – Projeto Proteger 2007www.alicemiller.com.
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