"NINGUÉM SAI GANHANDO DO PROCESSO DEPP VS
HEARD
Hoje saiu o veredito do caso Johnny Depp vs. Amber
Heard, que tanta gente esperava ansiosamente.
O júri decidiu em favor de Depp. Ele deve ganhar
US$ 10.35 milhões em indenização (10 milhões em compensações, 5 milhões em
punição. A lei da Virginia diz que o limite é 350 mil, portanto, o total é US$
10.35 mi). Quanto ao contra-processo de Heard, o júri determinou que ela deve
receber 2 milhões. Ainda não li se ela vai recorrer. Pelo menos o júri foi mais
razoável nos valores do que era pedido (ele pedia 50 milhões de dólares; ela,
100 milhões). Ainda assim, é uma fortuna. Talvez Heard tenha que declarar
falência.
Obviamente, os muitos fãs de Depp estão
comemorando. Já Heard, que compareceu à corte hoje para ouvir o veredito,
lamentou: "A decepção que sinto hoje vai além de palavras. Estou de
coração partido que a montanha de evidências ainda não foi suficiente para
enfrentar o poder e influência desproporcionais do meu ex-marido. Estou ainda
mais decepcionada o que este veredito significa para outras mulheres. É um
retrocesso".
Os comentários por aqui no blog até agora foram do
tipo "Chuuuuuupa feminazis!". Ou seja, daqueles bem acéfalos.
Para Eric Rose, um expert em crime e comunicação
(de Los Angeles), o julgamento foi um caso clássico de
"assassinato-suicídio". "Da perspectiva de manejo de reputação,
não há vencedores", alega ele. "Ambos se machucaram. Fica mais
difícil para que estúdios contratem qualquer um deles porque você estará
potencialmente alienando um grande segmento do seu público que pode não gostar
que você contratou Johnny ou Amber para um projeto específico porque os
sentimentos estão tão fortes agora".
Ainda é cedo para saber como o veredito afetará a
liberdade de expressão e a liberdade de imprensa dos EUA (afinal, o processo
foi por difamação, devido a um artigo de opinião publicado no Washington Post
em 2018 sem citar o nome de Depp). Mas deve abrir portas para muitos outros
processos em que celebridades se sentiram ofendidas. Os advogados devem estar
sorrindo de orelha a orelha.
A Dra. Ann Olivarius, advogada americana-britânica
especializada em casos de discriminação e assédio sexual e abuso, pergunta:
"Por que uma pessoa que perdeu o processo na Grã-Bretanha vai aos EUA
levar um caso que é essencialmente igual?" (Depp perdeu contra o tabloide
The Sun em 2020, que o chamou de "espancador de esposa"). "É
tudo sobre as redes sociais," ela mesma responde. "Para ele, isso é
um circo". E valeu muito a pena. Ele conseguiu se vingar. Há montes de
camisetas e hashtags escrito #AmberTurd (Amber M*rda).
A jornalista Liz Plank, da MSNBC, pergunta como
fomos do ponto de "acreditar nas mulheres" ao ponto de "torcer
pela humilhação das mulheres". Plank aponta o óbvio: "A humilhação
pública de Heard só fará com que mais vítimas tenham medo de denunciar".
Várias leitoras minhas no Twitter me falaram que essa consequência é culpa de
Heard, e minha, e de outras feministas que "defendem Heard" (mostrar
o óbvio é sair em defesa de alguém). O ódio que elas têm da atriz parece falar
mais alto que tudo. Afinal, como ela esteve longe de ser a "vítima
perfeita" (a santa, a virgem, a que não revida, sendo que mesmo as
"vítimas perfeitas" são punidas), nunca poderia ter se colocado como
figura pública que sofreu violência doméstica. Concordo com Plank:
"Milhões de pessoas parecem estar repentinamente interessadas em violência
doméstica -- mas só porque há uma chance de uma mulher desprezada e vingativa
estar mentindo sobre isso".
Não há dúvida alguma que o julgamento televisionado
foi um festival sensacionalista e que, graças a ele, Heard está sendo ameaçada,
insultada, humilhada todos os dias. Não há dúvida que existe uma campanha
organizada por boa parte dos seus agressores (aliás, não só Heard é alvejada,
mas qualquer pessoa que ousa defendê-la ou que se manifesta contra essa
perseguição). Gemma Peplow do Sky News pergunta como isso se tornou aceitável.
"Você não precisa acreditar em Heard ou gostar dela para ver como o abuso
online é perturbador. Imagina perder tempo para mandar uma mensagem pra alguém
dizendo que você quer por o bebê dela no microondas?", indaga Peplow.
Das dezenas de mulheres (muitas feministas) que
foram ao meu Twitter tentar me convencer de que Heard é uma mentirosa e uma
psicopata -- elas sabem porque assistiram a todo o julgamento, logo, viraram especialistas
(uma delas disse que viu vários vídeos sobre linguagem corporal, fazendo dela
mais expert ainda) --, nenhuma condenou os ataques que Heard recebe. É como se
estivesse subentendido: ela merece. Ela mentiu. É ela a agressora. Johnny é a
vítima. Feministas não podem ficar do lado de psicopatas -- vai defender a
Elize Matsunaga agora?
É esquisito, porque ao mesmo tempo que tanta gente
acha que Heard representa todas as mulheres e Depp representa todos os homens,
essa mesma gente não consegue ver o quadro completo, que é basicamente que
vítimas de violência são sempre desacreditadas, e que, depois desse carnaval,
muitas mulheres deixarão de denunciar agressões, porque o mundo todo viu o que
acontece quando uma mulher denuncia. Ah, mas as vítimas verdadeiras serão
tratadas de forma diferente. Sério?
Pros misóginos - e não estou falando apenas de
indivíduos problemáticos que odeiam mulheres, mas de grupos de extrema-direita
que se organizam para atacar e desacreditar mulheres, principalmente feministas
-, depois de encerrada a comemoração em relação à "vadia foi
desmascarada", não muda muita coisa. Eles sempre negaram toda e qualquer
acusação de violência doméstica, estupro e assédio vinda de qualquer mulher.
Todas as mulheres mentem, juram eles, tudo é falsa acusação. Uma denúncia de
estupro ou violência doméstica ou pedofilia só não é mentira quando o acusado é
um cara que eles detestam (tipo: o filho do Joe Biden, um assessor da Hillary
Clinton - lembram do Pizzagate? --, P. C. Siqueira, Ciro Gomes acusado de bater
na Patricia Pillar, Chico Buarque acusado de bater na Marieta Severo etc). Em
outras palavras: tudo é falsa acusação -- exceto as falsas acusações que eles
(não as mulheres) inventam pra atacar inimigos.
No universo paralelo em que misóginos vivem, basta
uma mulher denunciar um homem para que ele seja automaticamente preso e sua
vida seja destruída (na realidade, menos de 10% das denúncias formais de
estupro, por exemplo, acabam numa condenação). E não preciso nem dizer que os
autointitulados grupos pelos direitos dos homens não estão nem um pouco
interessados em defender homens. Eles gostam de dizer que homens também podem
ser vítimas de violência doméstica e de abuso infantil (claro que podem, e
são), mas só pra, a partir dessa obviedade, citar algum dado tirado do
Instituto de Pesquisa Mascu As Vozes Me Disseram, do tipo "mulheres batem
mais em homens do que vice-versa". Eles trabalham unicamente com mentiras.
Se alguém acredita, lucro pra eles.
Pra nós feministas, é lógico que o julgamento de
Depp vs Heard representa um retrocesso, mas é apenas mais um entre vários que
estamos vivendo. Qual será o próximo espetáculo, o processo por difamação que
um grande amigo de Depp, o roqueiro Marilyn Manson, está movendo contra a atriz
Evan Rachel Wood? O julgamento será televisionado? Manson tem tantos fãs como
Depp? Wood é uma vítima menos imperfeita que Heard? Na falta de um BBB para
assistir 24 horas e comentar, para fugir do nosso cotidiano cada dia mais
difícil, imagino que muita gente adoraria poder acompanhar um outro processo
entre celebridades pelas próximas seis semanas.
O julgamento Depp vs Heard, muito mais que o
veredito (que condenou ambos por difamação, Heard mais do que Depp), será usado
por muito tempo na tentativa de desqualificar acusações e de silenciar as
vítimas através de assédio jurídico. Mas mulheres e meninas (e meninos e alguns
homens) continuarão sendo agredidos (muito mais por homens que por mulheres),
continuarão denunciando, a maior parte distante dos holofotes da mídia. A
Justiça continuará falhando em inúmeros casos. E a gente continuará lutando.
Espero que muitas mulheres (algumas inclusive
feministas) que defendem Depp a qualquer custo, e que não sentem nada ao ver
Heard ser agredida online sem parar, olhem pro lado e vejam quem está marchando
ao seu lado - misóginos, neonazis, profissionais de fake news. Vocês acham que
eles vão defender vocês se vocês denunciarem uma agressão? Vocês acham que o
tratamento será diferente porque vocês são mulheres virtuosas, ao contrário de
Heard? Vão sonhando."
Lola Aronovich
Fonte: Escreva Lola Escreva ,
01 de junho de 2022.