“Então, afetamos o futuro de nossos filhos. À medida que destruímos o meio ambiente, todos destruímos o futuro deles, mas acredito que não seja tarde demais.”
Começo da Vida 2 – Lá Fora
O
papel da natureza na recuperação da saúde e bem-estar das crianças e
adolescentes durante e após a pandemia de COVID-19 - Sociedade Brasileira de
Pediatria (SBP)
Grupo de Trabalho Criança,
Adolescente e Natureza
Coordenação:
Luciana
Rodrigues Silva (SBP), Maria Isabel Amando de Barros (Instituto Alana,
relatora)
Membros: Daniel Becker, Dirceu Solé, Evelyn Eisenstein, Liubiana
Arantes de Araújo, Maria Isabel Amando de Barros, Ricardo Ghelman, Virgínia
Weffort
Crianças e adolescentes estão
experimentando e sentindo o impacto da Covid-19 de várias maneiras diferentes:
mudanças na relação com a escola, maior permanência em casa com as famílias,
aumento do tempo de uso de telas, assim como mudanças em sua saúde física,
emocional e bem-estar. Pesquisadores em todo o mundo ainda tentam estimar os
impactos emocionais, físicos e cognitivos do longo tempo de isolamento
decorrente da pandemia e do estresse dentro das famílias.
Uma metanálise que avaliou dados de 29
estudos, incluindo 80.879 jovens de todo o mundo, concluiu que as estimativas
de incidência de depressão e ansiedade infantil e no adolescente, durante a
pandemia de Covid-19 são da ordem de 25,2% e 20,5%, respectivamente. O estudo
concluiu ainda que a prevalência de sintomas de depressão e ansiedade durante
a Covid-19 dobrou, em comparação com as estimativas pré-pandêmicas. ¹
No
Brasil, uma pesquisa realizada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
(FMCSV) indicou que, na pandemia, 27% das crianças de 0 a 3 anos voltaram a ter
comportamentos que tinham quando eram mais novas, segundo a percepção dos pais.²
Embora saibamos que regressões geralmente são transitórias, essa é uma
evidência importante do impacto do isolamento nas crianças pequenas.
Em
outro levantamento também realizado pela FMCSV, dessa vez em parceria com a
Universidade Federal do Rio de Janeiro, crianças da pré-escola, entre quatro e
cinco anos, apresentaram sinais de déficit no desenvolvimento da expressão
oral e corporal no período de suspensão das aulas presenciais, de acordo com a
avaliação dos educadores.³
Em relação aos adolescentes no Brasil,
uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre os impactos
da pandemia nessa população apontou que 48,7% têm sentido preocupação,
nervosismo ou mau humor, na maioria das vezes ou sempre. Houve aumento no
consumo de doces e congelados, bem como no sedentarismo: o percentual de jovens
que não faziam 60 minutos de atividade física em algum dia da semana antes da
pandemia era de 20,9%, e passou a ser de 43,4%. 4
Já bastante confinados antes da
pandemia, as crianças e adolescentes ficaram ainda mais sedentários e perderam
as poucas oportunidades que tinham de brincar, praticar atividades físicas e
conviver entre si, do lado de fora, vinculando-se com a natureza e com a vida.
Precisaremos de todos os esforços possíveis a fim de mitigar os impactos da
pandemia e fortalecer essa geração que irá enfrentar tantos desafios, incluindo
os impactos das alterações climáticas, a desigualdade social e econômica, e as
consequências das rápidas mudanças tecnológicas.
Há evidências sólidas de que criar e
possibilitar o acesso de crianças, jovens e famílias a espaços naturais
diversos e acolhedores pode contribuir muito para a recuperação de sua saúde e
bem-estar, bem como para o fortalecimento de vínculos e conexões sociais.
5 Afinal, as áreas verdes são soluções baseadas na natureza
não apenas para as questões ambientais, mas também para a melhoria da saúde
pública. Simultaneamente, aumentar o número de áreas verdes seguras e
conservadas, e distribuí-las de forma mais equânime no território, nos ajudará
a construir uma cidade mais segura, sustentável, resiliente, includente e
solidária.6
As atividades físicas, naturalmente
desenvolvidas em contato com a natureza, apresentam potencial para reduzir a
gravidade das infecções por Covid-19 pelos efeitos positivos dos exercícios
sobre a imunidade, hábitos de sono, pressão arterial, controle do peso,
glicemia e infecções respiratórias virais. Adicionalmente os benefícios para a
saúde mental são enormes, desde a redução do estresse contínuo e dos sintomas
de depressão e ansiedade, com reequilíbrio hormonal do cortisol e sua
repercussão no sistema imunológico e nas inflamações.7
Um amplo estudo nacional desenvolvido
no Canadá sobre as experiências e atitudes de crianças e jovens durante a
pandemia, no qual meninos e meninas foram ouvidos, relata que o brincar e o
acesso às áreas abertas e naturais - como ruas, praças e parques - foram
apontados como fatores de influência para vivências mais positivas durante o
período da pandemia, incluindo experiências escolares mais satisfatórias, maior
bem-estar, mais atividade física, menos tempo de telas e menos estresse. O
estudo também ressalta a desigualdade relacionada ao acesso a esses benefícios.
Crianças e jovens que vivem em apartamentos pequenos, longe de áreas verdes
qualificadas, são em sua maioria negros e indígenas e vêm de famílias de baixa
renda.8 No Brasil,
essa desigualdade também é evidente, com a maioria da população vivendo em
áreas urbanas, em contextos que vão desde crianças restritas aos playgrounds
dos edifícios até territórios vulneráveis e sem acesso a áreas verdes e
equipamentos públicos qualificados.
O reconhecimento do direito ao brincar
e ao convívio do lado de fora, ao ar livre, em contato com a natureza, está
fundamentado em diversos marcos legais ligados à infância e é reconhecido pela
Sociedade Brasileira de Pediatria como uma prioridade.9
Durante a pandemia, esse direito foi negado tendo em vista a necessidade de
prevenir a transmissão viral. Agora é o momento de rever estratégias e
trabalhar pela redução dos danos. Acreditamos que fomentar o acesso ao brincar
e ao convívio social ao ar livre, sem aglomerações e sempre usando máscaras,
ajudará a mitigar o longo impacto da pandemia na saúde e no bem-estar de uma
geração de crianças e adolescentes.
Recomendações para os pediatras:
– Orientar
que as crianças e adolescentes tenham acesso diário, no mínimo por uma hora, a
oportunidades de brincar, aprender e conviver com a - e na - natureza para que
possam se desenvolver com plena saúde física, mental, emocional e social.
– Acolher
famílias apreensivas e impactadas com perdas, traumas e medos, e avaliar junto aos
pais e mães formas seguras de realizar atividades de lazer a céu aberto,
ressaltando o efeito terapêutico e curativo que esses momentos podem trazer:
procurar um local pouco visitado ou visitar parques e praças fora do horário
de pico; usar máscaras; higienizar as mãos com frequência; evitar aglomerações;
em caso de passeios em pequenos grupos com outras famílias e amigos, não
compartilhar alimentos, bebidas e utensílios.
–
Planejar com as famílias uma “dieta de natureza”, de forma que as crianças e adolescentes
possam retomar o hábito de brincar e conviver ao ar livre de forma cotidiana e
frequente: brincar no parquinho mais próximo pelo menos uma hora por dia; fazer
um passeio ou caminhada na rua/praça/orla da praia ou lagoa uma vez na semana;
fazer um piquenique num parque diferente uma vez ao mês, priorizando a alimentação
saudável; e, eventualmente, planejar viagens para locais onde as crianças
possam usufruir dos espaços abertos com autonomia, liberdade e segurança.
Recomendações para as famílias:
-
Priorizar toda e qualquer atividade de lazer e convívio social em
espaços abertos, ao ar livre e com elementos naturais como grama, areia,
terra, árvores e plantas, com os quais as crianças possam interagir dentro de
seu próprio ritmo e tempo.
- Sugerir e
incentivar que as escolas incluam aprendizagens ao ar livre nos protocolos de retomada
das aulas presenciais. O uso de espaços ao ar livre, como pátios, quadras e
jardins, se apresenta como uma forma de diminuir os riscos de transmissão do
coronavírus e, ao mesmo tempo, colabora na promoção de saúde e bem-estar dos
educadores e estudantes.10
–
Manter os cuidados protetivos: usar máscaras de forma adequada, lavar sempre as
mãos e/ou higienizá-las com álcool em gel, evitar aglomerações e festas e, em
caso de quaisquer sintomas, ficar em casa e testar os envolvidos.
Recomendação geral:
– Apoiar
iniciativas da sociedade civil e políticas públicas destinadas a aumentar o
acesso e o contato das crianças e das famílias, especialmente as mais
vulneráveis, com a natureza, o ar livre e a conservação das áreas naturais.
Referências:
01. Racine
N, McArthur BA, Cooke JE, Eirich R, Zhu J, Madigan S. Global Prevalence of Depressive
and Anxiety Symptoms in Children and Adolescents During COVID-19: A Meta-analysis.
JAMA Pediatr. 2021 Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamapediatrics/fullarticle/2782796?resultClick=1.
doi:10.1001/jamapediatrics.2021.2482. Acesso em 17 de setembro de 2021.
02.
Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Primeiríssima Infância - Interações na
pandemia: Comportamentos de pais e cuidadores de crianças de 0 a 3 anos em
tempos de Covid-19; 2021 Disponível em:
https://www.fmcsv.org.br/pt-BR/biblioteca/primeirissima-infancia-interacoes-pandemia-comportamentos-cuidadores-criancas-0-3-anos-covid-19/
Acesso em 20 de setembro de 2021.
03. Para
78% dos professores, crianças da pré-escola têm expressão oral e corporal
afetadas durante a pandemia, diz pesquisa; G1; Educação; 29/03/2021 Disponível
em: https://g1.globo.
com/educacao/volta-as-aulas/noticia/2021/03/29/para-78percent-dos-professores-criancas-da-pre-escola-tem-expressao-oral-e-corporal-afetadas-durante-a-pandemia-diz-pesquisa.
ghtml/ Acesso em 20 de setembro de 2021.
04.
Fundação Oswaldo Cruz. Pesquisa da Fiocruz aponta os impactos da pandemia na
rotina dos adolescentes brasileiros, 2020 Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-da-fiocruz-aponta-os-impactos-da-pandemia-na-rotina-dos-adolescentes-brasileiros/
Acesso em 10 de setembro de 2021.
05. Chawla
L. Benefits of Nature Contact for Children. J Plann Liter. 2015;30(4):433-452.
Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0885412215595441/
doi:10.1177/0885412215595441. Acesso em: 20 de setembro de 2021.5
06. Sugar
S. The Necessity of Urban Green Space for Children’s Optimal Development. UNICEF.
Disponível em: https://www.unicef.org/media/102391/file/Necessity%20of%20
Urban%20Green%20Space%20for%20Children%E2%80%99s%20Optimal%20Development.pdf/ Acesso
em: 20 de setembro de 2021
07. Sallis
JF, Pratt M. Multiple benefits of physical activity during the Coronavirus pandemic.
Rev. Bras. Ativ. Fís. Saúde. 14/09/2020 [acesso em: 20 setembro 2021]; 25:1-5.
Disponível em: https://rbafs.emnuvens.com.br/RBAFS/article/view/14268/
08. Maximum
City. COVID-19 child and youth study: the role of play and outdoor space; 2021
Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/5a7a164dd0e628ac7b90b463/t/6053
601208bc3850abd83bcf/1616076821403/COVID-19+Child+and+Youth+Study_+PLAY+
AND+OUTDOOR+SPACE+REPORT+v2.pdf Acesso em 20 de setembro de 2021.
09.
Sociedade Brasileira de Pediatria, Instituto Alana. Manual de Orientação -
Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes; 2019
Disponível em: https://
criancaenatureza.org.br/wp-content/uploads/2019/05/manual_orientacao_sbp_cen.pdf
Acesso em 20 de setembro de 2021.
10.
Instituto Alana. Planejando a reabertura das escolas: a contribuição das
pesquisas sobre os benefícios da natureza na educação escolar Disponível em: https://criancaenatureza.org.
br/wp-content/uploads/2020/08/Planejando-a-reabertura-das-escolas.pdf Acesso
em 20 de setembro de 2021.
Para mais informações:
O
documentário O Começo da Vida 2: Lá Fora, que conta com o apoio da Sociedade
Brasileira de Pediatria e está disponível nas principais plataformas digitais,
é uma grande fonte de informação e inspiração para mobilizar esforços por mais
natureza para as crianças e mais crianças na natureza. No site do filme, é
possível acessar diversos materiais de apoio direcionados às famílias, aos
educadores e aos profissionais de saúde.
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