“Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas”.
Manoel de Barros
Tem por lá um menino a brincar no terreiro: entre
conchas, osso de arara, pedaços de pote, sabugos, asas de caçarolas etc.
E tem um carrinho de bruços no meio do terreiro.
O menino cangava dois sapos e os botava a puxar o
carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia e pedras no seu
caminhão.
O menino também puxava, nos becos de sua aldeia, por
um barbante sujo umas latas tristes.
Era sempre um barbante sujo.
Eram sempre umas latas tristes.
O menino é hoje um homem douto que trata com física
quântica.
Mas tem nostalgia das latas.
Tem saudades de puxar por um barbante sujo umas latas
tristes.
Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem douto
encomendou uma árvore torta –
Para caber nos seus passarinhos.
De tarde os passarinhos fazem árvore nele.
Manoel de Barros
O Poeta
Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
Manoel de Barros
Achadouro
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que
a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o
tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas.
Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são
sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da
intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa.
Aquilo que a negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada
contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros. Que eram buracos que os
holandeses, na fuga apresssada do Brasil, faziam nos seus quintais para
esconder suas moedas de ouro, dentro de grandes baús de couro. Os baús ficavam
cheios de moedas dentro daqueles buracos. Mas eu estava a pensar em achadouros
de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá
estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé
do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou
hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às
costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.
Manoel de Barros
"Poesia é voar fora da asa".
Manoel de Barros
Atenção: o blog Educar Sem Violência fará um breve recesso.
Fotos: Adrian McDonald - cineasta e fotógrafo de Nova York
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