O que separa o assassinato de
cinco jovens por policiais, no Rio, e o depoimento de mães de adolescentes
mortos? Como a opinião pública percebe esses dramas?
Durante 95 segundos, três mães – três
mães negras – falam sobre seus filhos. Sorrindo. “Eu nunca vi uma pessoa igual a
ele”, diz a mãe de Hítalo Gabriel, de 12 anos. “Todos os dias ele falava pra
mim: ‘Você é a melhor mãe do mundo, te amo'”. A mãe de Cristian, de 13 anos,
lembra que ele praticava vários esportes, era brincalhão, difícil vê-lo de cara
feia. Queria estudar e ser bombeiro, como o tio. “Ele trabalhava, com 17 anos já
tinha emprego registrado”, conta a mãe de Christian. “Era um menino cheio de
sonhos. Era o primeiro em matemática. Era o primeiro na minha vida”.
Os depoimentos fazem parte de uma
campanha que o Unicef – o Fundo das Nações Unidas para a Infância – lançou no
dia 20, o Dia da Consciência Negra. Nos 40 segundos finais do vídeo, as mães
baixam a cabeça. Fecham os olhos. Choram. Enquanto isso lemos que, todos os dias, 28 crianças e
adolescentes morrem assassinados no Brasil. E que a maioria são meninos negros,
pobres e moradores da periferia. A mãe de Christian completa: “Ele já tinha
namorada. Já tinha emprego. E eu só tinha ele”.
Em dez dias, o vídeo teve apenas
1.000 visualizações no YouTube. E por que tão pouca
gente viu? Porque a imprensa não divulgou.
NO RIO, A HISTÓRIA CONTINUA
Alguns internautas, porém (inclusive
uma publicação de esquerda), não se acanharam em divulgar a imagem dos cadáveres
dos cinco jovens abaixo: Carlos Eduardo da Silva de Souza, 16 anos; Roberto de
Souza Penha, 16 anos; Cleiton Corrêa de Souza, de 18 anos; Wilton Esteves
Domingos Júnior, de 20 anos; e Wesley Castro Rodrigues, de 25 anos. Não dessa
foto com eles sorridentes, mas dos corpos.
Todos eram negros. Estavam em um
carro, na Estrada João Paulo, zona norte do Rio, e foram fuzilados pela polícia.
Na noite do sábado (28), com 50 tiros. Douglas Belchior, naCartaCapital, informa
que o crime foi cometido na comunidade da Lagartixa, no Complexo da Pedreira,
bairro de Costa Barros. Parentes contaram ao jornal Extra que eles tinham ido
comemorar o primeiro salário de Roberto como jovem aprendiz no Atacadão da
avenida Brasil. No domingo, iriam à praia.
O site GuadalupeNews relatou que
quatro policiais usaram luvas para pegar a chave do veículo e tentar abrir o
porta-malas. Não conseguiram. Aí tentaram forjar a cena do crime de forma
canhestra: colocaram uma arma de brinquedo sob o pneu esquerdo dianteiro. Não
colou. Foram presos. Mesmo numa cidade e num país acostumado aos chamados “autos
de resistência”, quando policiais executam e colocam a culpa nas vítimas, a
cara-de-pau não passou batida.
GENOCÍDIO DE JOVENS NEGROS
O articulista da CartaCapital –
militante do movimento negro e membro do Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente, o Conanda – observa que o grupo de jovens estava em
um carro com documentação em dia, motorista habilitado e desarmados. E pergunta,
antes de cobrar o secretário de Segurança Pública e o governador do Rio, Luiz
Fernando Pezão (PMDB): “O que havia ali que pudesse justificar a ação dos
policiais? Serem todos negros?”
A campanha do Unicef com as mães de
crianças e adolescentes assassinados informa que, no caso dos adolescentes, o
Brasil só fica atrás da Nigéria. Até 2019, mais 42 mil podem ser mortos –
mantido o ritmo atual. “As crianças e adolescentes assassinados têm cor, classe
social e endereço”, enfatiza o órgão da ONU. “São em sua maioria meninos negros,
pobres, que vivem nas periferias e áreas metropolitanas das grandes
cidades”.
A taxa de homicídio entre
adolescentes negros é quase 4 vezes maior do que aquela entre os brancos. E suas
mortes são justificadas, “de forma equivocada”, pelos conflitos entre facções ou
pelo tráfico de drogas. O Unicef informa que entre 92% e 95% dos homicídios
cometidos no Brasil – de todos os homicídios – não são solucionados. E que parte
dessa estatística se deve aos tais “autos de resistência”. (E não somente no
Rio, a cidade onde a polícia mais mata no país.)
NADA MAIS TEM IMPORTÂNCIA?
Se a notícia sobre os cinco
executados no Rio correu as redes sociais, assim como ocorreu com outros
assassinatos de crianças e adolescentes na cidade, em 2015, por que o vídeo do
Unicef não teve repercussão? Haveria algum problema no formato? Alguma
preferência pela exclamação efêmera (quando não, mórbida) em detrimento de uma
reflexão séria, consistente e perene? Para o diretor do vídeo do Unicef, o
publicitário Alex Ribondi, estamos anestesiados.
Ele conta que as histórias das mães
emocionaram as nove pessoas que estavam no set de filmagem. Ele acredita que,
diante do momento político, da quantidade de notícias e escândalos, o filme
tenha perdido espaço “nesse universo de confusões transmitidos e propagados
todos os dias”. “Infelizmente estamos vivendo um momento em que nada tem tanta
importância mais”, reflete. “E se tiver alguma, não dura muito”.
Ele já tinha feito outros trabalhos
que tocavam nesse tema. Alguns extremamente fortes e pesados. “Não há como ficar
indiferente a essa realidade”, considera. “São histórias tristes, dolorosas e
terrivelmente verdadeiras. Cada uma delas aumenta a percepção do quanto perdemos
tempo com problemas irrelevantes e o quão anestesiada está a maior parte das
pessoas. Acho que ainda vamos demorar muito até conseguirmos mudar a situação de
verdade. Infelizmente”.
CRÍTICA: O PAPEL DA
MÍDIA
A campanha do Unicef não saiu na
Globo e não ganhará menção do Criança Esperança. O Unicef já foi o parceiro da
rede platinada no Criança Esperança, entre 1986 e 2003; desde 2004 é a Unesco.
Mas não dá nem para comparar o alcance de sua campanha contra o genocídio
infantojuvenil ao alcance do que a emissora abençoa. E isso diz muito sobre o
país. A campanha lançada pelo Unicef no Dia da Consciência Negra vai direto ao
ponto central: a matança de crianças e adolescentes existe e, se nada for feito,
terá mais 42 mil mortos em cinco anos. Em outro planeta, a Globo perpetua a
mensagem de “esperança”, despolitizada, como se fosse mais um quadro populista
do Luciano Huck, jogando a responsabilidade pela política pública específica
(aquela relativa a crianças e adolescentes) ao telespectador na sala de jantar,
subitamente generoso, a investir em projetos isolados. E o Brasil faz de conta
que purga suas responsabilidades.
Enquanto isso, a campanha do
Unicef – politizada – atinge uma ou outra testemunha espalhada pelo país. A
imprensa – toda ela – ignora. Mas depois noticia (como se fosse uma mercadoria
perecível) mais uma execução de adolescentes negros no Rio. E mais uma. Mais
uma. Outra. E outra. Mesmo na Globo. Não
importa. Linearmente. Sem coesão, sem que o silêncio e a dor de cada pai sejam
tomados como a ferida exposta de todo um país. Sem uma postura efetiva de quem
queira tomar o assunto como prioridade absoluta. Em meio a uma ética de
conveniência e ao progressivo abandono da estética. Numa palavra: a cobertura
não é digna. A narrativa não é digna. A pulverização das notícias é indigna.
Cada jornalista e cada internauta (mesmo aquele que não profanaria um cadáver) é
também responsável por essa dor e por esse embotamento.
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