O filme Coringa tem sido
objeto de inúmeras análises desenvolvidas por diferentes áreas do conhecimento.
Algumas delas buscaram interpretar o tema apresentado pelo filme de Todd
Phillips a partir de perspectivas subjetivas, dando destaque à compreensão do adoecimento
psíquico e da consequente necessidade e urgência de se garantir o diagnóstico
precoce e a atenção em saúde de qualidade às pessoas com transtornos mentais.
Outras buscaram compreender Coringa para além de sua expressão e história individual
por meio de interpretações sociológicas ou estéticas. Para contribuir com o debate
suscitado pelo filme Coringa destaco um elemento que considero estruturante
na experiência de Arthur Fleck que é o impacto das violências em seu
desenvolvimento físico e mental.
Coringa e minha tristeza abissal
Eu que amo apaixonadamente os
palhaços e os bailarinos. Eu que sinto uma admiração quase invejosa pelas
atrizes e atores que arrebatam nossos corações e vísceras com suas metamorfoses
magistrais. Eu que sou uma adita na sétima arte desde menina assisti Coringa
como quem testemunha um desmoronamento. Do começo ao fim Coringa me fez
sentir uma tristeza abissal.
Senhora tristeza oceânica, velha
conhecida que me acompanha há 22 anos em meu dia a dia como psicóloga
que cuida de pessoas em situação de violências. A história de Arthur Fleck me teletransportou
para o interior de settings terapêuticos onde ouvi, toquei e cheirei relatos de
puro horror que irremediavelmente me faziam sentir a mesma tristeza azul.
O seu
mundo de açúcar e de certezas desabaria sob seus pés, se um dia os olhos
das crianças pudessem projetar o que os adultos já fizeram com elas!
Assisti as violências perpetradas
contra Arthur Fleck como uma concretização ultrarrealista dessa projeção imaginária de muitos
olhinhos de crianças que atendi ou que conheci por meio de relatos apresentados
por colegas de trabalho, notícias de jornais e estudos científicos. Não existe leveza possível ao adentrar no
assombroso mundo de memórias daqueles que viveram o que o pequeno Arthur sofreu
em sua infância.
O mundo adulto pode ser absolutamente perverso com as
crianças. As crianças podem ser cruéis com seus pares. As pessoas podem sentir
prazer no sofrimento do outro, elas podem gargalhar com a dor daqueles que
julgam desajustados, estranhos, fora de seus padrões de sucesso, aqueles que os
estadunidenses chamam de perdedores.
Não devo justificar nenhuma
forma de violência, todavia compreendo como surgem os violentos. O corredor polonês
de violências por que passam desde muito cedo algumas pessoas me fez compreender,
concreta e profundamente, como o humano se desmorona. As violências provocam fissuras,
rachaduras nas pessoas, em alguns casos elas quebram tanto por dentro que a pessoas
se convertem em escombros.
Violências Estruturais que
roubam a dignidade humana, privando muitos de direito elementares como trabalho,
moradia digna e saúde de qualidade. Violências Simbólicas que hierarquizam
pessoas, valorizando poucas e descartando ou eliminando tantas sem que haja um
único grão de culpa, remorso ou luto. Violências de Gênero que institui
identidades masculinas por meio de valores violentos de supremacia e controle sobre
os demais, infestando o mundo de masculinidades tóxicas. Violências Intrafamiliares que se sedimentam no arbítrio do pátrio poder, objetivando
filhos e filhas ao transformar seus pequenos corpos em continentes a serem
invadidos por descargas de frustrações e projeções de toda espécie de
sentimentos hostis e aniquiladores. Quantas violências provocaram abalos sísmicos na
crosta continental de Arthur Fleck?
Não existiriam Coringas sem o
desmoronamento provocado por inúmeras violências. Infelizmente, histórias que
mortificam Arthur Fleck, parindo assim Coringas não existem apenas em obras de
ficção, ao contrário, elas são mais comuns do que queremos acreditar. Os olhos
das crianças ainda não possuem o poder de projeção de memórias, por isso peço a
vocês que assistam Coringa como se ele fosse um sismógrafo que prenuncia
desmoronamentos cuja erupção de magmas devastadores é sempre um risco possível. Oxalá o filme Coringa se impregne em sua mente como uma bandeira por uma Infância Livre de violências.
Cida Alves
Recomendo a leitura da entrevista
"Raine listou os fatores presentes em Coringa que definem o declínio de Arthur Fleck: abuso físico, negligência e subnutrição na infância. A pobreza é um fator que aumenta o risco" (Rolling Stone).