4 de fev. de 2010

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O artigo opinativo postado abaixo é de autoria de Diane Valdez, professora da FE/UFG, pesquisadora na área da infância e militante do Movimento de Meninos/as de Rua GO. Ele foi publicado no Jornal "O Popular" no dia 22 de dezembro de 2009 (p.07). Não deixem de ler, vale a pena!

A criança como objeto de indiferença ou de caridade

Diane Valdez
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No findar de mais um ano na história da humanidade, gostaria de registrar algumas considerações (e provocações) a respeito da infância neste espaço de comunicação que chega às mãos de inúmeras pessoas. Escrevo este texto movida pelas inúmeras campanhas que envolvem a infância, em especial a pobre, neste período do ano. Não é difícil perceber que as crianças são alvos de uma comoção que toma conta da população de forma surpreendente. Muito se fala da importância de se fazer alguém ‘feliz’, ou fazer uma criança ‘sorrir’, ou doar algo para um ‘carente’ necessitado e até mesmo fala-se de ‘mudar’ a vida de uma criança com um presente usado. No restante do ano, juntamente com os enfeites de natal, esta aparente atenção desaparece.

Este foi mais um ano de pesar para a infância. Apesar de algumas conquistas reconhecíveis, como a redução da mortalidade infantil, ainda nos deparamos com situações espantosas, e que, estranhamente, não causam reação em uma boa parte da população. Não quero delegar este descaso somente o poder público de Goiás, sobretudo de Goiânia, que, definitivamente, não prioriza a criança e o adolescente. Ao completar 19 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), infelizmente, ainda não é colocado em prática nas terras goianas, como deveria ser. Aliás, essa legislação é criticada, por ter a ousadia e a pretensão de querer garantir direitos básicos para a infância e para a adolescência.

No Brasil de 2009, um fato que chocou e provocou polêmica foi o episódio da menina violentada pelo padrasto no estado do Pernambuco e que teve a gravidez de gêmeos interrompida. Este direito foi duramente criticado pela Igreja Católica que excomungou, como se estivesse na Idade Média, os médicos e a família. Não se pensou na situação perversa da criança de nove anos, com 33 quilos, que corria risco de morte. Em Goiás, situações que envolvem a infância e a adolescência foram manchetes pontuais. Não há quem não tenha visto ao menos um caso de abuso sexual cometido contra uma criança na imprensa. Certamente que muitos assistiram perplexos o episódio da menina de cinco anos que morreu na queda do avião pilotado pelo pai em um estacionamento de shopping em Goiânia.

Impossível minimizar este caso, contudo, não podemos esquecer do uso sensacionalista do episódio. Não é novidade também observar matérias sobre crianças que morrem no trânsito em Goiânia, e isso já daria um outro texto. Pois se trata de uma visível falta de políticas públicas para o trânsito. Creio que também foi visível o número de meninos e meninas que vieram para as ruas nos últimos meses em Goiânia. Vale lembrar que este fato foi bastante discutido pela imprensa e órgãos de defesa da área. Isso se deu em função do desmantelamento das entidades municipais, os NUECs (Núcleos de Educação Comunitária) que atendiam crianças e adolescentes nos bairros no período que estes não estavam nas escolas. Triste perceber que os responsáveis pelo desmantelamento desta política culpam os meninos ou as famílias (chamando-as de desestruturadas) por esta vinda para as ruas.

Continuando a pautar a não prioridade pela criança, durante o ano que se finda assistimos mães e famílias moradoras de bairros pobres reivindicarem vagas nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e denunciarem a falta de vaga nessas instituições. Estima-se que cerca de 3.000 crianças não são atendidas. O poder público municipal nega um direito fundamental da criança na faixa etária de zero a cinco anos: o atendimento em instituições apropriadas. Recentemente, famílias de crianças atendidas nos CMEIs reivindicaram o direito de atendimento nas férias. A resposta da SME foi que quando as crianças são matriculadas a família ‘já sabe’ que a instituição fecha no período de férias e que a mesma precisa ‘se organizar’ para isso. A pergunta é como a mãe, ou outra pessoa da família, que trabalha com faxinas, ou outro trabalho informal, vai ‘se organizar’? Sem este atendimento sabemos que muitas crianças pequenas ficam pelas ruas expostas a todo tipo de violência. Falando em direito e proteção do Estado, creio que seja de conhecimento de uma boa parte da população os casos de violência sexual que duas crianças sofreram dentro de escolas municipais.

Dois meninos, um no início do ano e outro neste semestre, foram abusados sexualmente no interior da escola. Estranhamente em um lugar que deveria proteger as crianças. Certamente se essas crianças pertencessem a uma outra classe social a repercussão seria outra; por hora, o que ficou foi a indignação das famílias que, decepcionados com esta instituição, decidiram tirar as crianças da escola. Por último, que infelizmente não é o último caso, quero registrar a questão do precário atendimento aos adolescentes infratores em Goiás. Os meninos permanecem nos batalhões policiais e são tratados com descaso e violência. O Estado mais uma vez não cumpre o ECA, a instituição que deveria existir para proteger o adolescente e investir na sua formação é um espaço inadequado que em nada contribui para um trabalho educativo como prevê o ECA. No dia 09 de novembro, o adolescente Alex Abreu dos Santos foi alvejado, pelas costas, no Primeiro Batalhão de Polícia Militar e morreu uma semana depois. Certamente que a família de Alex não vai ter um natal feliz. Teríamos casos e casos para registrar aqui. Precisaríamos do espaço inteiro deste jornal. Uma edição especial sobre o tratamento dado às crianças no cerrado goiano. Contudo, por meio deste pequeno quadro percebemos que a criança, durante o ano, não foi merecedora de cuidados, zelos, atenção, indignações etc.

No entanto, ao chegar o final do ano, uma boa parte da sociedade, movida pelo espírito cristão, resolve focar na criança como merecedora de caridade. Assim, a infância se torna instrumento de uma bondade súbita que toma conta das pessoas uma vez por ano. Tornam-se freqüentes as conhecidas campanhas de Natal, tão comuns nesta época quanto música natalina nas lojas para incentivar o consumo. Tem campanha de todo tipo e com diferentes finalidades. São promovidas por empresários, grupos independentes, igrejas, escolas, políticos, meios de comunicação etc. que arrecadam brinquedos (de preferência usados), roupas, alimentos para distribuírem a população pobre. Não há originalidade neste ato de bondade: na ocasião certa os produtos são distribuídos. Interessante que poucos fazem isso de forma discreta. Geralmente a imprensa acompanha, divulga, talvez para mostrar o quanto ‘é preciso olhar os mais necessitados’. As justificativas são as mesmas (dificilmente alguém vai falar que faz isso para aliviar a consciência), partem do princípio da solidariedade. Palavra desgastada e mal utilizada.

As declarações piedosas ressaltam a alegria de poder dar um pouco para essas pobres crianças (pobres mesmo) que nada possuem. Semana passada um jornal local mostrou uma matéria sobre alguns jovens que promoveram um dia de lazer na periferia de Goiânia para crianças consideradas carentes, não sem direitos, mas carentes. Achei interessante a fala de uma jovem entusiasmada declarando que não custava nada ‘perder um pouco do tempo’ e causar um pouco de alegria para a pequenada. Este caráter assistencialista, que coloca na ordem o dever cumprido (fiz a minha parte) em nada ajuda a promover ou garantir os direitos das crianças. Piedade é diferente de solidariedade. É visível nas declarações o quanto esta prática em nada se assemelha com solidariedade e justiça, no sentido mais amplo e belo destas palavras. Praticar a solidariedade, a justiça, a indignação e lutar pelos direitos da criança que são descumpridos não têm data. Não podemos negar: a questão da infância tem ganhado visibilidade e isso é muito positivo. Contudo, precisamos avançar muito ainda para fazer valer o que chamamos de ‘prioridade absoluta’, o que não deve ser confundido com ‘caridade absoluta’.