Por amor às crianças, parem de compartilhar informações equivocadas, que impedem ou dificultam que as meninas e os meninos aprendam a diferença entre as exposições e os toques violentos e as manifestações corporais não erotizadas. A nudez em si não é uma violência sexual. A nudez pode ser expressão de muitos afetos e ações, pode significar desapego, humildade, liberdade, transcendência, beleza, poesia, arte... Estudem mais sobre o fenômeno da violência sexual. Menos opinião e crendices e mais conhecimento por favor!
Cida Alves
A nudez de Francisco de Assis foi um ato de rebelião contra a usura, a cobiça, a ganância e soberba de seu tempo.
"O nu incomoda exatamente porque, quando não está a serviço do ato sexual, expõe o que somos a quem nos olha: carne, ossos, pelos. Animais, ainda que pensantes, animais. E perecíveis" (Cláudio Rodrigues).
"Louvada seja a tua coragem, Francisco! Respeito e admiro a memória deste homem que transgrediu uma norma e pela sua nudez deu um exemplo sobretudo para a igreja do seu tempo. Estamos falando da Idade Média (século XII). O direito ao uso e não à propriedade parece ir ao encontro do pensamento marxista que, séculos depois, questiona o direito do homem de acumular e egoisticamente viver segundo a lógica do ter. A nudez de Francisco é um exemplo também dessa atitude política que se coloca diante do mundo na certeza de que nada se leva dele com a morte. Vestidos ou nus, crendo ou não, haveremos de nos tornar corpo putrefato, seco, pó, nada. A nudez, de repente, pode ser uma grande mestra!"
(Cláudio Rodrigues).
O corpo nu de São Francisco - Cláudio Rodrigues
Qual o lugar
do corpo na cultura? Melhor, qual o lugar do corpo na cultura ocidental? A quem
interessa o discurso da corporeidade? Que fascínio e que horror o corpo pode
gerar sobre os homens? Por que o corpo nu incomoda tanto? Motivo de fascínio pela
pintura e escultura, matéria prima do ator, do cantor e do performer, o corpo
não consegue se libertar dos estigmas milenares de uma cultura de ódio. Por que
temos tanto horror ao que é a casa do homem na terra? Receptá-lo da alma, o
corpo se vê atacado constantemente. E brada, estrebucha, mói e remói uma dor. O
corpo grita: “o que querem de mim vocês que não são nada neste mundo sem mim?
Hipócritas!”
Quando
ataques de toda ordem são perpetrados contra o corpo em estado de arte – por
isso, político – é preciso que nos questionemos o que há por trás disso, uma
vez que “o homem foi sempre simultaneamente o corpo que pensa e o corpo que ele
pensa, o corpo que é e o corpo que tem”[1].
O corpo tem uma história que não pode ser negligenciada ou escamoteada.
Portanto, é preciso assumir a incorporação da humanidade, esse ente que só se
concretiza individualmente no sujeito que é corpo. Não se pode deixar de lado
que o corpo pode ser representado, sentido, teologado, filosofado, escrito,
constrangido, regulado, libertado… Escolha como quer mostrar o corpo, porque
enquanto conceito, o corpo nada mais é do que escolha individual.
E por que o
nu incomoda tanto? Por que a nudez é comparada ao grotesco e à feiura? A alma é
sempre nua para o sujeito que condena. Ele não pode se libertar dos fantasmas
(esses sim, grotescos) que povoam seu espírito atormentado pelo que ele
desconhece mas julga conhecer. O nu incomoda não por ser feio, nojento ou
incitar a libido. Imagina! Ninguém nasce vestido, nenhuma mulher dá à luz de
vestido. O tempo de transar vestido também já passou. Estamos há dois séculos
disso. O nu incomoda exatamente porque, quando não está a serviço do ato
sexual, expõe o que somos a quem nos olha: carne, ossos, pelos. Animais, ainda
que pensantes, animais. E perecíveis.
Num
instigante texto sobre nudez, Giorgio Agamben[2]
parte da análise de uma performance elaborada pela artista italiana Vanessa
Beecroft com corpos de mulheres nuas expostos numa galeria de arte em Berlim, e
empreende uma reflexão a partir do mito do pecado original segundo o livro de
Gênesis para dizer que o cristianismo nunca imaginou o corpo nu, ainda que o
mito do pecado mostre que Adão e Eva “viram que estavam nus e sentiram
vergonha”. É uma teologia das vestes o que Agamben discute. Assim, os primeiros
homens, mitologicamente falando, nunca estiveram despidos, mas usavam antes do
pecado uma veste de luz que lhes foi retirada com a transgressão.
E o nu entra
para a história como símbolo do abjeto, daquilo que deve ser envergonhado e
constrangido. O corpo leva a fama de maldoso por causa do pensamento. Mas basta
uma leitura atenta do mito (mito é para ser interpretado, não concebido como
fato) para perceber que o nu é resultado da curiosidade de Eva diante da cerca
ilusória que o criador erguera para que o casal não bisbilhotasse a árvore do
conhecimento. Sim, somos nus porque fomos atrás do conhecimento. Está no mito.
Quem tiver ouvidos e olhos que escute e olhe. Essa foi a primeira transgressão.
Santa transgressão.
Ao analisar a performance na Neue Nationalgalerie, Agamben diz que as mulheres nuas no centro da sala, vestidas com túnicas transparentes, seriam a própria configuração de anjos justiceiros que, do alto de sua nudez, encaram os homens vestidos como se lhes dissessem: “vocês continuam nus, ainda que usem essas roupas; vocês têm desejo, ainda que inibidos pelos tecidos; vocês não passam de figuras atormentadas por um pensamento que quer se livrar daquilo que não pode, o corpo. Reconheçam!”. Além de fazer uma exegese não apenas do texto sagrado, mas do modo com a teologia cristã o interpretou, Agamben é enfático:
A nudez do
corpo humano é a sua imagem, isto é, o tremor que o torna cognoscível, mas que
permanece, em si, inapreensível. Daí o fascínio totalmente especial que as
imagens exercem sobre a mente humana. E precisamente porque a imagem não é a
coisa, mas a sua cognoscibilidade (a sua nudez), não manifesta nem significa a
coisa; e, todavia, visto que não é mais do que o doar-se da coisa ao
conhecimento, o seu despir-se das vestes que a cobrem, a nudez não é diferente
da coisa, ela é a própria coisa.[3]
De que é
mesmo que o homem tem medo quando se depara com uma situação performática com o
outro nu? Tem medo de enxergar. O nu na arte da performance tem uma função de
provocar o outro para o texto que somos. Me leia. Da cabeça aos pés, nu, como
vim ao mundo, me leia. Não diga nada depois. Apenas reflita o que é o homem
fora das vestimentas. O que é o homem fora da falsa proteção das roupas. O que
é o homem despido da cultura do vestir? Ele deixa de ser homem ao ficar pelado?
E qual a natureza de um nu num espaço como o museu? Ou a praça pública? Não
haverá aí uma ação política?
A
performance é uma arte muito nova realmente. Mas ela veio para questionar o
valor da arte como beleza, como verdade e fora do corpo. Quando o corpo deixa
de ser só o que produz a arte e passa a ser a tela, é preciso pensar que cada
dobra de pele, cada pelo, cada veia, cada marca de osso, cada membro (inclusive
aqueles de quem temos tanto medo, o pênis, o saco escrotal, a vagina, o cu, a
bunda, os peitos) passa a cumprir um papel que não diz mais respeito somente ao
fisiológico, por um lado, ou ao erótico, por outro. Quem estuda performance,
seja ela social, política ou artística, sabe disso. Ela desloca o olhar
acostumado do observador para o jogo de ser e não ser, ou seja, “dentro da
estrutura do jogo, o performer não é ele mesmo (por causa das operações de
ilusão), mas também não é não-si-mesmo (por causa das operações de realidade).
O performer e a audiência, do mesmo modo, operam num mundo de dupla
consciência”[4].
Entretanto, a audiência precisa pensar, coisa que parece não ser muito a
prática operante de quem já tem um juízo de valor sobre o que vê. Pais que
levam seus filhos a uma exposição onde o nu será apresentado em pintura,
escultura ou em performance serão tão estúpidos e insanos? Creio que existe no
seio dessa família algo que tem faltado a muitas por aí: conversa, diálogo,
discussão sobre o valor político da arte.
O problema é
que o nu provoca o olhar do moralista, fazendo com que ele tenha raiva de ser o
que é: animal que pensa, ainda que nu. Quando o corpo é a única tela que o
artista tem, com o qual ele elabora plasticamente uma ação de intervenção no
mundo, ao espectador exige-se se colocar em estado de leitura. Mas como ler um
corpo? Como perceber que o nu não tem um significado vazio, mas está repleto de
elementos culturais? É verdade que não se pode exigir muito daqueles que
fizeram da agressão verbal sua marca de hipocrisia. Não se pode esperar que um
hipócrita abra os olhos para o que ele não quer ver: a imoralidade que está
nele mesmo. Não se pode exigir de uma gente raivosa outro comportamento que não
seja uma atuação para interdição do que não compreende.
Embora eu
não professe mais nenhuma religião, alguns dos homens e mulheres que a igreja
canonizou me ensinam um bocado sobre a arte da transgressão. E nesse mês, no
dia 4 de outubro, festeja-se Francisco, o poverello de Assis, que
decidiu largar mão da riqueza, do prestígio e da fama de moço mulherengo para
abraçar a pobreza. E como ele fez isso? Ficando nu em pelo na praça pública,
diante dos pais, do bispo e dos transeuntes. No instante em que Francisco
abdicou do poder e da riqueza do pai, Pietro Bernardone, um comerciante de
finos tecidos, soube que havia perdido o filho para a santa pobreza.
A
performance de Francisco ilustra perfeitamente o ditado popular segundo o qual
“o hábito não faz o frade”; é óbvio que a palavra hábito significa menos
vestimenta do corpo do que “modo de ser ou agir”, ou, como demonstra Giorgio
Agamben no belíssimo livro Altíssima pobreza: regras monásticas e formas de
vida[5],
sobre a veste do monge repousa toda uma simbologia a respeito da regra de
vida consagrada a uma causa da qual são testemunhas textos, iconografias e a
própria vestimenta. Entretanto, ao se despir, Francisco chamou a atenção para
outro modo de ser: desnudou o mundo ao ficar nu, tirou do corpo o sentido
histórico da vergonha e jogou sobre ele a moral dos que não se envergonham da
nudez que ensina. Eis o sentido da “perfeita alegria” que o Francisco nu ou aos
farrapos cantava com um graveto a modo de violino pelos campos do Senhor.
Estaria louco ou possuído pela loucura lúcida que afronta os covardes?
Louco do
Senhor, como era chamado por uns, ou palhaço do Senhor, como era chamado por
outros, a lição de Francisco chega até nós, cristãos ou não cristãos, crentes
ou ateus, e nos ajuda a refletir sobre um mundo tão hostil que criamos para nos
amordaçar, seja em nome do que cremos, seja em nome do que julgamos saber. É o
caso dos inúmeros acessos de ira movidos contra a arte nos últimos dias.
Retirando imagens do contexto para o qual elas foram elaboradas – o museu, a
galeria de arte – grupos conservadores, sabendo que o povo brasileiro tem uma formação
cristã ainda que de base catequética apenas, e não costuma ter acesso a uma
formação estética nem na escola nem em visitas a centros culturais, grupos
conservadores têm incitado o ódio à nudez artística. De repente, as redes
sociais se tornam um ringue esquizofrênico de lutadores que nunca pisaram numa
galeria, mas se julgam no direito e no dever de serem justiceiros. Falam em
nome da família, da escola, da igreja e até do seu Deus.
Se Francisco
vivesse hoje e repetisse o que fez em praça pública em Assis, seria acusado de
pedólatra, de imoral, pervertido. Se não fosse julgado por atentar contra a
moral, talvez os justiceiros do Senhor fariam justiça com as próprias mãos
apedrejando-o. Depois, sem sequer lavar as mãos, iriam para suas casas e, diante
da mesa, rezariam um Pai-Nosso pedindo que o Senhor os livrasse do mal, amém.
Louvada seja
a tua coragem, Francisco! Respeito e admiro a memória deste homem que
transgrediu uma norma e pela sua nudez deu um exemplo sobretudo para a igreja
do seu tempo. Estamos falando da Idade Média (século XII). O direito ao uso e
não à propriedade parece ir ao encontro do pensamento marxista que, séculos
depois, questiona o direito do homem de acumular e egoisticamente viver segundo
a lógica do ter. A nudez de Francisco é um exemplo também dessa atitude
política que se coloca diante do mundo na certeza de que nada se leva dele com
a morte. Vestidos ou nus, crendo ou não, haveremos de nos tornar corpo
putrefato, seco, pó, nada. A nudez, de repente, pode ser uma grande mestra!
[1] BRAUNSTEIN, Florence; PÉPIN, Jean-François. O
lugar do corpo na cultura ocidental. Tradução João Duarte Silva. Lisboa:
Instituto Piaget, 1999, p. 11.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução Davi
Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 87-130.
[3] Agamben, 2014, p. 121.
[4] CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução
crítica. Tradução Thaís Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira.
Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 2010, p. 66-67.
[5] Agamben, Giorgio. Altíssima pobreza. Tradução
de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. O texto de Agamben
historiciza a vida monástica do século II ao século XII, não se limitando a ser
um estudo franciscano, mas chegando àquele que fez de sua vida uma renúncia ao
abraçar a pobreza.
Fonte: Carta Capital, 04 de outubro de 2017.
Foto: Cena do filme Francesco, 1989.
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