“Já para Rafael, o cara do Pinho Sol, a realidade é a que foi expressa num muro da comunidade onde ele tirou foto, no curto período em que cumpriu pena em regime aberto (com tornozeleira):— O Estado te esmaga de cima para baixo.Por conta desta foto, exposta em rede social, passou dez dias em solitária”.
Balzac,
que percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia estava
começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num
instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de
Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator
determinante e não apenas elemento determinado.
O
romancista tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde
ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie
de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e
constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos
dirigentes por meio da simulação de legalidade.
A
polícia de um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano
absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado
constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se
misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo
que se poderia chamar de “veneziano” — ou seja, o que estabelece uma rede sutil
de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como
alicerce do Estado.
Para
este fim, criam-se por toda a parte vínculos íntimos e profundos. A polícia se
disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte visível (com
os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta, com o seu exército
impressentido de espiões e alcaguetes, que em geral aparecem como exercendo
ostensivamente uma outra atividade. Este funcionamento duplo permite satisfazer
também a um requisito intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de
Balzac, e dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve
ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos
bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível os
aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.
Para
obter esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma
convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O Homem que Ri, de Victor Hugo,
estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento
dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a
privação, a frustração, a torpeza, a tara — e os remete à função repressora.
Daí
o interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu a solidariedade
orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o
aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos
seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor,
mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de
Vautrin, ao mesmo tempo o seu maior criminoso e o seu maior policial.
Dostoievski
percebeu uma coisa mais sutil: a função simbólica do policial como sucedâneo
possível da consciência — a sociedade entrando na casa de cada um através da
pressão ou do desvendamento que ele efetua. Em Crime e Castigo, o juiz de instrução Porfírio
Porfiriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento
dele mesmo.
Mas
foi Kafka n’O Processo,
quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo profundamente
social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada
vez mais um aspecto de polícia. Viu de que maneira a função de reprimir
(mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente,
ao ponto de acabar se tornando a sua própria finalidade. Quando isso ocorre,
ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.
Para
entrar em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de
motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais
parar, porque a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita em tirar
qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não
hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou da suspeita de
ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir, sem se
importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância
ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura
e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.
A
polícia aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao
homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor,
controle emocional, lealdade, discrição — dissolvidos com perícia ou
brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora, ela traz à
superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e transforma o pudor em
impudor, o controle em desmando, a lealdade em delação, a discrição em
bisbilhotice trágica.
Daí
uma espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de um
ser que ia penosamente se apresentando como outro, que de fato era outro, na
medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás,
seria mais correto dizer que o outro é o suscitado pela polícia. O outro, com a
sua verdade imposta ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra
a vontade, dos porões onde tinha sido mais ou menos trancada.
De
fato, a polícia tem necessidade de construir a verdade do outro para poder
manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até
que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se
espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o
outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da
fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive
empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de
um ingrediente da mais alta eficácia: o medo — em todos os seus graus e
modalidades.
Um
exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador,
no filme Inquérito sobre um
cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri.
O
delegado, que é também o criminoso, resolve brincar com o destino e como que
provar o mecanismo autodominante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para
isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é
o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora
vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato,
dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do
indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.
Chegado
à polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que se
confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel de
delegado. Este o interroga com brutalidade e o pressiona física e moralmente
para dizer quem era o assassino que se desvendara a ele na rua. Mas o pobre
diabo, completamente desorganizado pela contradição inexplicável, não tem
coragem para tanto. Com isso, vai ficando suspeito, vai-se caracterizando
legalmente corno possível criminoso, até desaparecer dos nossos olhos, trôpego,
arrasado, por uns corredores sujos que levam aonde bem suspeitamos.
A
força que o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma
ambiguidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida
acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do
ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
Tudo
nesse episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a
imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas
azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o
baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como
assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do
suspeito em delinquente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua
desorganização mental, forjada pela inquirição.
O
fulcro desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório em que o
delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão.
“—
Sou hidráulico”, responde ele.
O
delegado esbraveja:
”
— Qual hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O
que você é é encanador, não é? En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!”.
E
o desgraçado, já sem fôlego nem prumo: “— Sim, sou encanador”’. (Cito de
memória porque não tenho o roteiro.)
Vê-se
que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha
adotado uma designação de cunho técnico (idraulico,
em italiano), que o afasta da velha designação artesanal “encanador” (stagnaro, em italiano), e assim
lhe dá a ilusão de um nível aparentemente mais elevado, ou pelo menos mais
científico e atualizado. Mas o policial o reduz ao nível anterior, desmascara a
sua autopromoção, lira para fora a sua verdade indesejada. E, no fim, é como se
ele dissesse:
”
— Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente
alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador. Estou
reduzido ao meu verdadeiro eu, libertado do outro” .
Mas,
na verdade, foi a polícia que lhe impôs o outro como eu. A polícia efetuou um
desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o
que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a
ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny
tinha razão, quando anotou seu diário:
“Não
tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha
medo do medo”.
Fonte: Texto publicado em "Opinião, em janeiro de 1972 e recuperado por Outras Palavras.
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