“um indivíduo tem a responsabilidade moral de desobedecer leis injustas (…). Qualquer lei que eleve a individualidade humana é justa, qualquer lei que a degrade é injusta. Uma lei injusta é um código que um grupo, majoritário, força uma minoria a obedecer, sem que alguém seja responsabilizado (…) um indivíduo que viola uma lei injusta deve fazê-lo abertamente, amorosamente e disposto a aceitar as penalidades. Um indivíduo que desobedece uma lei que sua consciência diz ser injusta, e que prontamente aceita a pena de prisão para estimular a consciência de uma comunidade frente às injustiças que ela comete, está na realidade expressando o maior respeito possível pela lei” (Martin Luther King - célebre Carta da Prisão de Birmingham).
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Os resultados encontrados no controverso experimento de Stanley Milgram dão um mortal tiro na crença de que a obediência a uma autoridade é sempre uma ação positiva. O trabalho de investigação de Milgram demonstrou que homens comuns – que não apresentavam prazer sádico, são capazes de cometer atrocidades contra um outro ser humano quando se sentem desresponsabilizados por seus atos ao obedecerem uma ordem de uma autoridade.Milgram pesquisou homens e mulheres, pessoas de diferentes etnias, e somente uma parcela minúscula conseguiu desobedecer a ordem injusta. Gandhi, Luter King e Paulo Freire, estavam corretos ao criticarem a educação que valoriza a obediência incondicional a uma autoridade. A obediência cega é perigosa e amoral, como nos alertou Hannah Arendt em seu célebre livro “Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal”*, ela é semente e fruto da “Banalidade do Mal” (Cida Alves).
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Martin Luther King, Jr: Carta de uma prisão em Birmingham
Meus caros amigos clérigos, Durante meu confinamento aqui na
prisão municipal de Birmingham, deparei-me com sua declaração recente chamando
minhas atividades atuais de “insensatas e inoportunas”. Raramente paro para
responder a críticas do meu trabalho e ideias. Se tentasse responder a todas as
críticas que passam pela minha mesa, minhas secretárias mal teriam tempo para
outra coisa que não para essas correspondências no decorrer do dia, e eu não
teria tempo algum para o trabalho construtivo. Mas, como sinto que vocês são
homens de genuína boa vontade e que suas críticas são expostas com sinceridade,
quero tentar responder a sua declaração em termos que espero que sejam
pacientes e razoáveis.
Acho que devo mencionar por que estou aqui em Birmingham, já
que vocês foram influenciados pela visão que se opõe aos “forasteiros
invasores”. Tenho a honra de servir como presidente da Conferência Sulista de
Liderança Cristã (Southern Christian Leadership Conference), uma organização
que opera em todos os estados sulistas, com sede em Atlanta, Geórgia. Temos
cerca de oitenta organizações filiadas por todo o Sul, e uma delas é o
Movimento Cristão pelos Direitos Humanos do Alabama (Alabama Christian Movement
for Human Rights). Frequentemente, compartilhamos pessoal, recursos
educacionais e financeiros com nossos afiliados. Muitos meses atrás, a afiliada
aqui em Birmingham pediu-nos para ficar de sobreaviso para tomarmos parte em um
programa de ação direta e pacífica, se isso fosse considerado necessário. Nós
prontamente concordamos, e, quando o momento chegou, honramos nossa promessa.
Assim, eu, junto a vários membros do meu pessoal, estou aqui porque fui
convidado. Estou aqui porque tenho vínculos organizacionais aqui.
No entanto, mais fundamentalmente, estou em Birmingham porque
a injustiça está aqui. Assim como os profetas do século VIII A.C. abandonaram
suas vilas e levaram seu “assim disse o Senhor” muito além das fronteiras de
suas cidades natais, e assim como o Apóstolo Paulo abandonou sua vila de Tarso
e levou o evangelho de Jesus Cristo às mais remotas partes do mundo
greco-romano, também eu sou compelido a levar o evangelho da liberdade para
além de minha própria cidade natal. Como Paulo, devo constantemente responder
ao chamado macedônio por ajuda.
Além disso, estou ciente do inter-relacionamento entre todas
as comunidades e Estados. Não posso ficar ociosamente parado em Atlanta e não
estar preocupado com o que acontece em Birmingham. A injustiça em qualquer
lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares. Estamos presos em uma rede
inescapável de mutualidade, atados em um único laço do destino. Algo que aja
sobre alguém diretamente age sobre todos indiretamente. Não podemos nunca mais
nos permitir viver com a ideia estreita, provinciana, do “forasteiro agitador”.
Qualquer pessoa que viva dentro dos Estados Unidos não pode jamais ser
considerada um forasteiro em qualquer lugar dentro de suas fronteiras.
Vocês deploram as manifestações que estão ocorrendo em
Birmingham. Mas sua declaração, sinto dizer, deixa de expressar preocupação
semelhante com as condições que provocaram as manifestações. Tenho certeza de
que nenhum de vocês gostaria de descansar contente com o tipo raso de análise
social que trata meramente dos efeitos e não ataca as causas subjacentes. É
lamentável que as manifestações estejam ocorrendo em Birmingham, mas é ainda
mais lamentável que a estrutura de poder dos brancos da cidade tenha deixado a
comunidade negra sem alternativa.
Em qualquer campanha pacífica, há quatro passos básicos:
coleta dos fatos para determinar se existem injustiças; negociação;
auto-purificação; e ação direta. Efetuamos todos esses passos em Birmingham.
Não pode haver nenhum ganho em enunciar o fato de que a injustiça racial engole
essa comunidade. Birmingham é provavelmente a cidade mais completamente
segregada dos Estados Unidos. Sua feia história de brutalidade é amplamente
conhecida. Os negros experimentaram um tratamento grosseiramente injusto nos
tribunais. Houve mais bombardeios não solucionados de casas e igrejas negras em
Birmingham do que em qualquer outra cidade no país. Esses são os fatos duros e
brutais do caso. Com base nessas condições, os líderes negros tentaram negociar
com as autoridades da cidade. Mas os últimos recusaram-se consistentemente a
tomar parte em negociações de boa fé.
Então, no último mês de setembro, surgiu a oportunidade de
falar com os líderes da comunidade econômica de Birmingham. No decorrer das
negociações, certas promessas foram feitas pelos comerciantes – por exemplo, de
remover os sinais raciais humilhantes das lojas. Com base nessas promessas, o
reverendo Fred Shuttlesworth e os líderes do Movimento Cristão pelos Direitos
Humanos de Alabama acordaram uma interrupção das manifestações. Com o passar de
semanas e meses, percebemos que éramos as vítimas de uma promessa quebrada.
Alguns sinais, removidos por pouco tempo, retornaram; outros permaneceram. Como
em muitas outras experiências anteriores, nossas esperanças tinham sido
destruídas, e a sombra de uma decepção profunda caiu sobre nós. Não tínhamos
alternativa a não ser nos prepararmos para a ação direta, por meio da qual
exibiríamos nossos próprios corpos como um meio de apresentar nossa causa à
consciência das comunidades local e nacional. Cientes das dificuldades
envolvidas, decidimos empreender um processo de auto-purificação. Iniciamos uma
série de oficinas sobre o pacifismo, e repetidamente nos perguntávamos: “Vocês
são capazes aceitar golpes sem retaliar?” “Vocês são capazes de resistir à
provação da cadeia?” Decidimos marcar nosso programa de ação direta no período
de Páscoa, percebendo que, exceto pelo Natal, é o principal período de compras
do ano. Sabendo que um programa vigoroso de retração econômica seria o efeito
colateral da ação direta, sentimos que esse seria o melhor momento para aplicar
uma pressão sobre os comerciantes em prol da mudança necessária.
Então, demo-nos conta de que a eleição para prefeito de
Birmingham ocorreria em março, e rapidamente decidimos postergar a ação para
depois do dia de eleição. Quando descobrimos que o Comissário de Segurança
Pública, Eugene “Touro” Connor, havia reunido votos suficientes para ir ao
segundo turno, decidimos mais uma vez postergar a ação para depois do dia do
segundo turno, para que as manifestações não pudessem ser usadas para
obscurecer os temas. Como muitos outros, esperávamos ver a derrota do Sr.
Connor, e com esse fim aguentamos adiamento após adiamento. Tendo ajudado nessa
necessidade da comunidade, sentimos que nosso programa de ação direta não
poderia mais ser atrasado.
Vocês podem muito bem perguntar: “Por que ação direta? Por que
sit-ins, marchas e assim por diante? Não seria a negociação um caminho melhor?”
Vocês estão bastante certos em clamar por negociações. Na verdade, esse é o
real propósito da ação direta. A ação direta pacífica busca criar uma tal crise
e promover uma tal tensão que a comunidade que constantemente se recusou a
negociar é forçada a confrontar o tema. Ela busca, assim, dramatizar um tema
que não pode mais ser ignorado. Minha referência à criação de tensão como parte
do trabalho do resistente pacífico pode soar um tanto chocante. Mas devo
confessar que não tenho medo da palavra “tensão”. Opus-me veementemente à
tensão violenta, mas há um tipo de tensão construtiva, pacífica, que é
necessária para o crescimento. Assim como Sócrates sentiu que era necessário
criar uma tensão na mente para que os indivíduos pudessem ascender da servidão
de mitos e de meias verdades ao reino livre de amarras da análise criativa e da
avaliação objetiva, também nós temos de ver a necessidade de impertinentes
pacíficos para criar o tipo de tensão na sociedade que ajudará os homens a
ascenderem das escuras profundezas do preconceito e do racismo às alturas
majestosas da compreensão e da fraternidade. O propósito de nosso programa de
ação direta é criar uma situação tão recheada de crise que inevitavelmente abrirá
as portas à negociação. Eu, portanto, concordo com vocês no seu clamor por
negociações. Nossas amadas terras do Sul têm estado atoladas por tempo demais
em um trágico esforço para viver em um monólogo ao invés de em um diálogo.
Um dos pontos fundamentais em sua declaração é o de que a ação
que eu e meus associados tomamos em Birmingham é inoportuna. Alguns
perguntaram: “Por que vocês não deram à nova administração da cidade tempo para
agir?” A única resposta que posso dar a essa indagação é que a nova
administração de Birmingham tem de ser incitada tanto quanto a que está de
saída, antes que ela aja. Estaremos tristemente enganados se sentirmos que a
eleição de Albert Boutwell como prefeito trará uma época de ouro a Birmingham.
Embora o Sr. Boutwell seja uma pessoa muito mais tolerante do que o Sr. Connor,
ambos são segregacionistas, dedicados à manutenção do status quo. Tenho
esperança em que o Sr. Boutwell será razoável o bastante para notar a
futilidade de uma resistência ampla ao fim da segregação. Mas ele não notará
isso sem a pressão dos partidários dos direitos civis. Meus amigos, tenho de
dizer a vocês que não obtivemos um único ganho em direitos civis sem uma firme
pressão legal e pacífica. Lamentavelmente, é um fato histórico que grupos privilegiados
raramente renunciam aos seus privilégios por vontade própria. Indivíduos podem
ver a luz da moral e renunciar voluntariamente às suas posturas injustas; mas,
como Reinhold Niebuhr lembrou-nos, grupos tendem a ser mais imorais do que
indivíduos.
Sabemos por meio de experiências dolorosas que a liberdade
nunca é voluntariamente concedida pelo opressor; ela tem de ser exigida pelo
oprimido. Francamente, ainda não tomei parte em uma campanha de ação direta que
fosse “oportuna” na visão daqueles que não sofreram indevidamente da doença da
segregação. Já faz anos que ouço a palavra “Espere!” Ela ressoa nos ouvidos de
cada negro com uma familiaridade aguda. Esse “espere” quase sempre significou
“nunca”. Temos de chegar à percepção, junto com um de nossos eminentes
juristas, de que “a justiça adiada por muito tempo é justiça negada”.
Esperamos por mais de 340 anos por nossos direitos
constitucionais e concedidos por Deus. As nações da Ásia e da África estão
dirigindo-se com uma velocidade a jato rumo à conquista da independência
política, mas nós ainda nos arrastamos a passo de cavalo e de charrete rumo à
conquista de uma xícara de café em um aparador. Talvez seja fácil àqueles que
nunca sentiram os dardos perfurantes da segregação dizer “espere”. Mas quando você
viu bandos perversos lincharem suas mães e pais à vontade e afogar suas irmãs e
irmão a seu capricho; quando você viu policiais cheios de ódio amaldiçoarem,
chutarem e até matarem seus irmãos e irmãs negros; quando você vê a vasta
maioria de seus vinte milhões de irmãos negros sufocando-se em uma jaula
hermética da pobreza em meio a uma sociedade de abundância; quando você de
repente descobre sua língua travada e sua fala gaga ao tentar explicar a sua
irmã de seis anos de idade por que ela não pode ir ao parque de diversões
público cuja propaganda acabou de passar na televisão, e vê lágrimas jorrando
dos olhos dela quando lhe é dito que o Funtown está fechado para crianças de
cor, e vê ameaçadoras nuvens de inferioridade começando a se formar no pequeno
céu mental dela, e a vê começar a distorcer sua personalidade ao desenvolver um
rancor inconsciente contra as pessoas brancas; quando você tem de inventar uma
resposta a um filho de cinco anos de idade que está perguntando: “papai, por
que as pessoas brancas tratam as pessoas de cor tão mal?”; quando você faz uma
viagem através de seu estado e descobre ser necessário dormir noite após noite
nos cantos desconfortáveis de seu carro porque nenhum motel o aceita; quando
você é humilhado entra dia sai dia por sinais irritantes dizendo “branco” e “de
cor”; quando seu prenome torna-se “neguinho”, seu nome do meio torna-se
“menino” (não importa sua idade) e seu sobrenome torna-se “John”, e sua mulher
e mãe nunca são chamadas pelo título respeitável de “Sras.”; quando você é
perseguido de dia e assombrado à noite pelo fato de que você é um negro,
vivendo constantemente na ponta dos pés, sem saber exatamente o que esperar em
seguida, e é atormentado por medos interiores e ressentimentos exteriores;
quando você está sempre lutando contra uma impressão degradante de “não ser
ninguém” – então você entenderá porque achamos difícil esperar. Chega um
momento em que a capacidade de suportar esgota-se, e os homens não estão mais
dispostos a mergulhar no abismo do desespero. Espero, senhores, que vocês
possam compreender nossa impaciência legítima e inevitável. Vocês manifestam
uma boa dose de ansiedade quanto à nossa disposição de violar as leis. Essa é
certamente uma preocupação legítima. Como nós exortamos tão ativamente as pessoas
a obedecerem à decisão de 1954 da Suprema Corte que baniu a segregação em
escolas públicas, à primeira vista pode parecer um tanto paradoxal que nós
conscientemente violemos leis. Também se poderia perguntar: “Como vocês podem
advogar a violação de certas leis e a obediência a outras?” A resposta está no
fato de que existem dois tipos de leis: as justas e as injustas. Eu seria o
primeiro a advogar a obediência a leis justas. Tem-se uma responsabilidade não
só legal como também moral de obedecer a leis justas. De modo contrário, tem-se
uma responsabilidade moral de desobedecer a leis injustas. Concordaria com
Santo Agostinho em que “uma lei injusta simplesmente não é lei”.
Agora, qual é a diferença entre as duas? Como se pode
determinar se uma lei é justa ou injusta? Uma lei justa é um código produzido
pelo homem que se ajusta à lei moral ou à lei de Deus. Uma lei injusta é um
código que está em desacordo com a lei moral. Para colocar nos termos de Santo
Tomás de Aquino: uma lei injusta é uma lei humana que não está radicada na lei
eterna e na lei natural. Qualquer lei que eleve a personalidade humana é justa.
Qualquer lei que degrade a personalidade humana é injusta. Todos os estatutos
segregacionistas são injustos porque a segregação desfigura a alma e danifica a
personalidade. Ela dá ao segregador uma falsa impressão de superioridade e aos
segregados, uma falsa impressão de inferioridade. A segregação, para usar a
terminologia do filósofo judeu Martin Buber, substitui uma relação “eu-você”
por uma relação “eu-isso” e acaba por relegar pessoas à condição de coisas.
Portanto, a segregação não é apenas política, econômica e sociologicamente
doentia: é moralmente errada e pecaminosa. Paul Tillich disse que o pecado é
uma separação. A segregação não é uma expressão existencial da trágica
separação do homem, da sua horrível alienação, da sua terrível pecaminosidade?
Sendo assim, posso exortar os homens a obedecerem à decisão de 1954 da Suprema
Corte, porque ela é moralmente correta; e posso exortá-los a desobedecerem a
normas segregacionistas, porque elas são moralmente erradas.
Consideremos um exemplo mais concreto de leis justas e
injustas. Uma lei injusta é um código que um grupo majoritário em termos de
poder ou de número compele um grupo minoritário a obedecer, mas ao qual não se
sujeita. Isso é a diferença tornada legal. Pela mesma razão, uma lei justa é um
código que uma maioria compele uma minoria a seguir e que ela própria está
disposta a seguir. Isso é a igualdade tornada legal. Deixe-me fazer outro esclarecimento.
Uma lei é injusta se for imposta a uma minoria que, por ter o direito de votar
negado a si, não participou da decretação ou da criação da lei. Quem pode dizer
que o parlamento do Alabama que constituiu as leis segregacionistas daquele
Estado foi democraticamente eleito? Por todo o Alabama, todos os tipos de
métodos tortuosos foram usados para impedir os negros de tornarem-se eleitores
registrados, e há alguns municípios em que, embora os negros componham a
maioria da população, um negro sequer está registrado. Qualquer lei decretada
sob essas circunstâncias pode ser considerada democraticamente estruturada?
Às vezes, uma lei é justa no papel e injusta na sua aplicação.
Por exemplo, fui preso por uma acusação de fazer uma passeata sem autorização.
Agora, não há nada de errado em existir uma norma que exija uma autorização
para uma passeata. Mas essa norma torna-se injusta quando é usada para manter a
segregação e negar a cidadãos o direito fundamental da primeira emenda à
Constituição de reunião pacífica e de protesto.
Espero que vocês sejam capazes de observar a distinção que
estou tentando mostrar. De modo algum, defendo a evasão e o desafio à lei, como
faria o segregacionista furioso. Isso levaria à anarquia. Alguém que viole uma
lei injusta tem de fazê-lo abertamente, amorosamente, e com disposição para
aceitar a pena. Argumento que um indivíduo que viola uma lei que a consciência
lhe diz que é injusta, e que aceita de bom grado a pena de prisão a fim de
despertar a consciência da comunidade quanto à sua injustiça, está na verdade
exprimindo o mais elevado respeito à lei.
Obviamente, não há nada de novo nessa forma de desobediência
civil. Ela foi manifestada de maneira sublime pela recusa de Shadrach, Meshach
e Abednego a obedecerem às leis de Nabucodonosor, sob o argumento de que estava
em jogo uma lei moral mais elevada. Foi praticada soberbamente pelos primeiros
cristãos, que preferiam enfrentar leões famintos e a dor torturante do talho a
submeter-se a certas leis injustas do Império Romano. Até certo ponto, a
liberdade acadêmica é uma realidade hoje porque Sócrates praticou a
desobediência civil. Na nossa própria nação, o Boston Tea Party representou um
ato imponente de desobediência civil.
Nunca devemos nos esquecer de que tudo que Adolf Hitler fez na
Alemanha era “legal” e tudo que os combatentes húngaros da liberdade fizeram na
Hungria era “ilegal”. Era “ilegal” ajudar e confortar um judeu na Alemanha de
Hitler. Ainda assim, tenho certeza de que, se tivesse vivido na Alemanha
naquele tempo, teria ajudado e confortado meus irmãos judeus. Se vivesse hoje
em um país comunista onde certos princípios caros à fé cristã foram suprimidos,
defenderia abertamente a desobediência às leis antirreligiosas do país.
Tenho de fazer duas confissões sinceras a vocês, meus irmãos
cristãos e judeus. Primeiro, tenho de confessar que ao longo dos últimos anos
decepcionei-me seriamente com os brancos moderados. Quase cheguei à lamentável
conclusão de que a maior pedra no caminho dos negros em seu avanço rumo à liberdade
não é o White Citizen’s Counciler ou o membro da Ku Klux Klan, mas os brancos
moderados, que são mais zelosos da “ordem” do que da justiça; que preferem uma
paz negativa que é a ausência de tensão a uma paz positiva que é a presença da
justiça; que dizem constantemente: “concordo com vocês quanto ao objetivo que
buscam, mas não posso concordar com seus métodos de ação direta”; que acreditam
paternalisticamente que podem fixar o cronograma para a liberdade de outro
homem; que vivem sob um conceito mítico do tempo e que constantemente
aconselham o negro à espera por uma “época mais apropriada”. A compreensão
superficial de pessoas de boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão
completa de pessoa de má vontade. A aceitação morna é muito mais atordoante do
que a rejeição total.
Eu tinha tido esperanças de que os brancos moderados
compreenderiam que a lei e a ordem existem para o propósito de estabelecer a
justiça e que quando fracassam nesse propósito tornam-se represas estruturadas
perigosamente que bloqueiam o curso do progresso social. Tinha tido esperanças
de que os brancos moderados compreenderiam que a atual tensão no sul é uma fase
necessária da transição de uma detestável paz negativa, em que os negros
passivamente aceitavam suas injustas situações difíceis, para uma paz positiva
e substantiva, em que todos os homens respeitarão a dignidade e o valor da
personalidade humana. Na realidade, nós que nos envolvemos em ações diretas
pacíficas não somos os criadores da tensão. Tão-somente trazemos à superfície a
tensão oculta que já existe. Descortinamo-la, para que possa ser vista e
tratada. Como um furúnculo que não pode ser curado enquanto estiver coberto,
mas que deve ser exposto com toda a sua feiura aos remédios naturais do ar e da
luz, a injustiça tem de ser desvendada, com toda a tensão que sua exposição
gera, à luz da consciência humana e ao ar da opinião nacional, antes que possa
ser curada.
Em sua declaração, vocês afirmam que nossas ações, embora
pacíficas, devem ser condenadas porque precipitam a violência. Mas essa é uma
afirmação lógica? Isso não equivale a condenar um homem roubado porque sua
posse de dinheiro precipitou o ato mau do roubo? Isso não equivale a condenar
Sócrates porque seu compromisso inabalável com a verdade e suas investigações
filosóficas precipitaram o ato do povo mal orientado pelo qual o fizeram beber
a cicuta? Isso não equivale a condenar Jesus porque sua singular consciência
divina e devoção inesgotável à vontade de Deus precipitaram o ato mau da
crucificação? Devemos notar que, como os tribunais federais consistentemente
afirmaram, é errado incitar um indivíduo a interromper seus esforços para obter
seus direitos constitucionais básicos porque a jornada pode precipitar a
violência. A sociedade tem de proteger o roubado e punir o ladrão. Também tinha
tido esperanças de que os brancos moderados rejeitariam o mito concernente ao
tempo em relação à luta pela liberdade. Recebi há pouco uma carta de um irmão
branco do Texas. Ele escreve: “Todos os cristãos sabem que as pessoas de cor um
dia receberão direitos iguais, mas é possível que vocês estejam com uma pressa
religiosa grande demais. A cristandade precisou de quase dois mil anos para
alcançar o que tem hoje. Os ensinamentos de Cristo demoram a chegar a Terra.”
Essa concepção decorre de um trágico conceito errôneo do tempo, da noção
estranhamente irracional de que há algo no próprio curso do tempo que
inevitavelmente curará todos os males. Na realidade, o tempo em si é neutro;
pode ser usado quer destrutivamente, quer construtivamente. Cada vez mais,
sinto que as pessoas de má vontade usam o tempo de modo muito mais eficaz do
que as pessoas de boa vontade. Nós nos arrependeremos, no tocante a essa
geração, não apenas das palavras e ações odiáveis das pessoas más, como também
do silêncio espantoso das pessoas boas. O progresso humano nunca advém da roda
da inevitabilidade; ele deflui dos incansáveis esforços de homens dispostos a
serem colegas de trabalho de Deus, e, sem esse trabalho duro, o próprio tempo
torna-se um aliado das forças da estagnação social. Temos de usar o tempo
criativamente, com base no conhecimento de que o tempo sempre está pronto para
fazer o certo. Agora é a hora de tornar real a promessa de democracia e de
transformar nossa iminente elegia nacional em um criativo salmo da
fraternidade. Agora é a hora de alçar nossa política nacional da areia movediça
da injustiça racial à sólida rocha da dignidade humana.
Vocês falam de nossa atividade em Birmingham como extrema. A
princípio, fiquei um pouco decepcionado com o fato de amigos clérigos
considerarem meus esforços pacíficos como os de um extremista. Comecei a pensar
sobre o fato de que me situo no meio de duas forças opostas na comunidade
negra. Uma é a força da complacência, composta em parte por negros que, como
resultado de longos anos de opressão, estão tão carentes de amor-próprio e da
sensação de “ser alguém” que se adaptaram à segregação; e em parte de alguns
negros de classe média que, devido a certo grau de segurança acadêmica e
econômica e porque se beneficiam de algum modo da segregação, tornaram-se
insensíveis aos problemas das massas. A outra é uma força da amargura e do
ódio, que chega perigosamente perto de defender a violência. Manifesta-se em
vários grupos nacionalistas negros que estão brotando por todo o país, sendo o
maior e mais conhecido o movimento islâmico de Elijah Muhammad. Alimentado pela
frustração dos negros pela existência contínua da discriminação racial, esse
movimento é composto de pessoas que perderam a fé nos Estados Unidos, que
repudiaram completamente o cristianismo e que concluíram que o homem branco é
um “demônio” incorrigível.
Tentei me situar entre essas duas forças, dizendo que não
precisamos imitar nem a inação dos complacentes nem o ódio e o desespero dos
nacionalistas negros. Porque existe a maneira muito melhor do amor e do
protesto pacífico. Sou grato a Deus por, mediante a influência da igreja negra,
a maneira do pacifismo ter-se tornado uma parte essencial de nossa luta. Se
essa filosofia não tivesse surgido, muitas ruas do sul estariam agora, tenho
certeza, com rios de sangue. Estou ainda mais certo de que, se nossos irmãos
brancos repudiarem aqueles de nós que empregam ações diretas pacíficas como “um
bando de inflamados” ou “forasteiros agitadores”, e se se recusarem a apoiar
nossos esforços pacíficos, milhões de negros buscarão, por frustração e
desespero, consolo e segurança em ideologias nacionalistas negras – uma
evolução que inevitavelmente levaria a um assustador pesadelo racial.
Pessoas oprimidas não podem permanecer oprimidas para sempre.
A ânsia pela liberdade por fim manifesta-se, e foi isso que aconteceu com o
negro americano. Algo em seu interior lembrou-lhe de seu direito inato à
liberdade, e algo exterior lembrou-lhe que ele pode ser obtido. Consciente ou
inconscientemente, ele foi apanhado pelo espírito da época, e com seus irmãos
negros da África e seus irmãos amarelos e pardos da Ásia, da América do Sul e
do Caribe, o negro dos Estados Unidos está se movendo com uma sensação de
incrível urgência rumo à terra prometida da justiça racial. Ao reconhecer-se
esse anseio vital que se apoderou da comunidade negra, entende-se prontamente
por que manifestações públicas estão ocorrendo. O negro tem muitos
ressentimentos reprimidos e frustrações latentes, e ele precisa libertá-los.
Então, deixe-o marchar; deixe-o fazer peregrinações pias às prefeituras;
deixe-o ir em viagens pela liberdade – e tente entender por que ele tem de
fazê-lo. Se suas emoções reprimidas não forem liberadas de maneiras pacíficas,
buscarão expressão por meio da violência; isso não é uma ameaça, mas um fato
histórico. Assim, não disse ao meu povo: “livre-se de seu desgosto”. Antes,
tentei dizer que esse desgosto normal e saudável pode ser canalizado por
escapes criativos como a ação direta pacífica. E agora esse método está sendo
denominado de extremista. Mas, embora tenha ficado inicialmente decepcionado ao
ser classificado como extremista, continuando a pensar sobre o assunto,
gradualmente extraí certa dose de satisfação do rótulo. Não era Jesus um
extremista do amor: “Ame seus inimigos, abençoe aqueles que te amaldiçoam, faça
o bem àqueles que te odeiam e reze por aqueles que desprezivelmente te usam e
te atormentam”? Não era Amos um extremista da justiça: “Deixem a justiça fluir
como as águas e a probidade como um rio que nunca para”? Não era Paulo um
extremista do evangelho cristão: “Carrego no meu corpo as marcas do Senhor
Jesus”? Não era Martinho Lutero um extremista: “Aqui estou; não tenho
alternativa, então que Deus me ajude”? E John Bunyan: “Ficarei na prisão até o
fim dos meus dias, até que faça da minha consciência um matadouro”? E Abraham
Lincoln: “Esse país não pode sobreviver metade escravo e metade livre”? E
Thomas Jefferson: “Temos essas verdades como auto-evidentes, de que todos os
homens nascem iguais...”? Assim, a questão não é se seremos extremistas, mas
que tipo de extremistas seremos. Seremos extremistas do ódio ou do amor?
Seremos extremistas da preservação da injustiça ou da extensão da justiça?
Naquela cena dramática do Calvário, três homens foram crucificados. Nunca
devemos nos esquecer de que todos os três foram crucificados pelo mesmo crime –
o crime de extremismo. Dois eram extremistas da imoralidade e, assim, estavam
abaixo dos demais. O outro, Jesus Cristo, era um extremista do amor, da verdade
e do bem, e, por conseguinte, ergueu-se acima dos demais. Talvez o sul, o país
e o mundo estejam com uma terrível carência de extremistas criativos.
Tivera esperança de que os brancos moderados notariam essa
carência. Talvez estivesse otimista demais; talvez esperasse demais. Suponho
que deveria ter percebido que poucos membros da raça opressora podem
compreender os graves gemidos e os anseios apaixonados da raça oprimida, e que
menos ainda têm a perspicácia para notar que a injustiça tem de ser extirpada
por ações fortes, persistentes e determinadas. Sou grato, contudo, pelo fato de
que alguns de nossos irmãos brancos do sul alcançaram o significado dessa
revolução social e empenharam-se nela. Eles ainda são muito poucos em quantidade,
mas são muitos em qualidade. Alguns – como Ralph McGill, Lillian Smith, Harry
Golden, James McBride Dabbs, Ann Braden e Sarah Patton Boyle – escreveram sobre
nossa luta em termos eloquentes e proféticos. Outros marcharam conosco por ruas
sem nome do sul. Debilitaram-se em prisões imundas, infestada por baratas,
sofrendo os abusos e a brutalidade de policiais que os veem como “sujos amantes
dos negros”. Diferentemente de tantos de seus irmãos e irmãs moderados,
reconheceram a urgência do momento e sentiram a necessidade de poderosos
antídotos “de ação” para combater a doença da segregação. Deixem-me tomar nota
de minha outra grande decepção. Decepcionei-me tão imensamente com a igreja
branca e suas lideranças. É claro, há algumas notáveis exceções. Não me esqueço
do fato de que cada um de vocês tomou algumas posições significativas nesse
tema. Louvo-o, reverendo Stallings, pela sua postura cristã no último domingo,
ao receber negros nos seus serviços de devoção de maneira não-segregacionista.
Louvo os líderes católicos desse Estado por terem integrado o Spring Hill
College muitos anos atrás.
Mas, apesar dessas notáveis exceções, tenho de sinceramente
reiterar que me decepcionei com sua igreja. Não digo isso como um daqueles
críticos negativos que sempre conseguem encontrar algo errado na igreja. Digo
isso como um sacerdote do evangelho, que ama a igreja; que foi acalentado em
seu seio; que tem sido sustentado por suas bênçãos espirituais e que
permanecerá fiel a ela enquanto o fio da vida estender-se.
Quando fui de repente catapultado à liderança do protesto dos
ônibus em Montgomery, Alabama, há alguns anos, achei que seríamos apoiados pela
igreja branca. Achei que os sacerdotes, os padres e os rabinos brancos do sul
estariam entre os nossos mais firmes aliados. Ao contrário, alguns foram
completos oponentes, recusando-se a compreender o movimento pela liberdade e
deturpando seus líderes; muitos outros foram mais cautelosos do que corajosos e
permaneceram mudos atrás da segurança anestesiante das janelas de vitral.
A despeito de meus sonhos despedaçados, vim a Birmingham com a
esperança de que a liderança religiosa branca dessa comunidade veria a justiça
de nossa causa e, com profunda preocupação moral, serviria como canal através
do qual nossas justas queixas alcançariam a estrutura do poder. Tivera
esperança de que cada um de vocês compreenderia. Mas, de novo, decepcionei-me.
Ouvi numerosos líderes religiosos sulistas admoestarem seus
devotos a cumprir a decisão contra a segregação porque é a lei, mas ansiei por
ouvir sacerdotes brancos declararem: “Sigam esse decreto porque a integração é
moralmente correta e porque o negro é seu irmão.” Em meio a barulhentas
injustiças infligidas sobre o negro, observei membros da igreja permanecerem à
distancia e declamarem irrelevâncias pias e platitudes carolas. Em meio a uma
vigorosa luta para livrar nosso país da injustiça racial e econômica, ouvi
muitos sacerdotes dizerem: “Esses são temas sociais, com os quais o evangelho
não tem nenhuma preocupação real”. E vi muitas igrejas empenharem-se numa
religião completamente de outro mundo que faz uma estranha e não-bíblica
distinção entre o corpo e a alma, entre o sagrado e o secular.
Viajei acima e abaixo por Alabama, Mississipi e todos os
outros estados sulistas. Em dias sufocantes de verão e manhãs revigorantes de
outono, contemplei as lindas igrejas do sul, com seus cumes majestosos
apontados em direção aos céus. Admirei os perfis impressionantes dos amplos
edifícios de educação religiosa. Repetidamente, peguei-me perguntando: “Que
tipo de pessoa ora aqui? Quem é seu Deus? Onde estavam suas vozes quando dos
lábios do governador Barnett respingaram palavras de interposição e
nulificação? Onde elas estavam quando o governador Wallace deu um toque de
clarim em favor do desafio e do ódio? Onde estavam suas vozes de apoio quando
homens e mulheres negros, feridos e exaustos, decidiram levantar-se dos
calabouços escuros da complacência até as colinas claras do protesto criativo?”
Sim, essas perguntas ainda estão na minha mente. Em decepção
profunda, chorei pela frouxidão da igreja. Mas estejam certos de que minhas
lágrimas foram lágrimas de amor. Não pode existir decepção profunda onde não
existe amor profundo. Sim, amo a igreja. Como poderia não amar? Estou na
posição um tanto singular de filho, neto e bisneto de pregadores. Sim, vejo a
igreja como o corpo de Cristo. Mas, oh!, como maculamos e deixamos cicatrizes
nesse corpo por meio da negligência social e por meio do medo de sermos
não-conformistas.
Houve um tempo em que a igreja era bastante ponderosa – no
tempo em que os primeiros cristãos regozijavam-se por ser considerados dignos
de ter sofrido por aquilo em que acreditavam. Naqueles dias, a igreja não era
apenas um termômetro que registrava as idéias e princípios da opinião pública;
era um termostato que transformava os costumes da sociedade. Quando os
primeiros cristãos entravam em uma cidade, as pessoas no poder ficavam
transtornadas e imediatamente buscavam condenar os cristãos por serem
“perturbadores da paz” e “forasteiros agitadores”. Mas os cristãos prosseguiam,
com a convicção de que eram “uma colônia do céu”, que devia obediência a Deus e
não ao homem. Pequenos em número, eram grandes em compromisso. Eles eram
intoxicados demais por Deus para serem “astronomicamente intimidados”. Com seu
esforço e exemplo, puseram um fim em maldades antigas como o infanticídio e
duelos de gladiadores. As coisas são diferentes agora. Com tanta frequência a
igreja contemporânea é uma voz fraca, ineficaz com um som incerto. Com tanta frequência
é uma arquidefensora do status quo. Longe de se sentir transtornada pela
presença da igreja, a estrutura do poder da comunidade normal é confortada pela
sanção silenciosa – e com frequência sonora – da igreja das coisas tais como
são.
Mas o julgamento de Deus pesa sobre a igreja como nunca pesou.
Se a igreja atual não recuperar o espírito de sacrifício da igreja primitiva,
perderá sua autenticidade, será privada da lealdade de milhões e será
descartada como um clube social irrelevante com nenhum significado para o
século XX. Todos os dias, encontro pessoas jovens cuja decepção com a igreja
tornou-se uma repugnância absoluta.
Talvez tenha sido mais uma vez otimista demais. Estará a
religião organizada ligada inextricavelmente demais ao status quo para salvar o
país e o mundo? Talvez deva dirigir minha fé à igreja interior, espiritual, a
igreja dentro da igreja, como a verdadeira ekklesia e a esperança do mundo.
Mas, de novo, sou grato a Deus por algumas almas nobres das fileiras da igreja
organizada terem rompido as correntes paralisantes do conformismo e unido-se a
nós como parceiros ativos na luta pela liberdade. Eles abandonaram suas
congregações seguras e percorreram as ruas de Albany, Geórgia, conosco.
Desceram as rodovias do sul em viagens tortuosas pela liberdade. Sim, foram
para a cadeia conosco. Alguns foram expulsos de suas igrejas, perderam o apoio
de seus bispos e colegas sacerdotes. Mas agiram com a fé de que o bem derrotado
é mais forte do que o mal triunfante. Sua testemunha tem sido o sal espiritual
que tem preservado o verdadeiro significado do evangelho nesses tempos
turbulentos. Eles cavaram um túnel de esperança através da montanha negra da
decepção. Espero que a igreja como um todo enfrente o desafio nessa hora
decisiva. Mas mesmo que a igreja não venha ajudar a justiça, não perco a
esperança no futuro. Não tenho medo a respeito do resultado de nossa luta em
Birmingham, mesmo que nossas razões sejam no momento mal compreendidas.
Alcançaremos a meta da liberdade em Birmingham e no mundo inteiro, porque a
meta dos Estados Unidos é a liberdade. Não importa se estamos ofendidos e
escarnecidos, nosso destino está ligado ao destino dos Estados Unidos. Antes de
os peregrinos desembarcarem em Plymouth, estávamos aqui. Antes de a pena de Jefferson
desenhar as palavras majestosas da Declaração de Independência através das
páginas da história, estávamos aqui. Por mais de dois séculos, nossos
antepassados trabalharam nesse país sem receber salários; eles colheram o
algodão; eles construíram as casas de seus senhores enquanto sofriam injustiças
crassas e humilhações vergonhosas – e, no entanto, com uma vitalidade sem fim,
continuaram a prosperar e a desenvolver-se. Se as crueldades inenarráveis da
escravidão não puderam parar-nos, a oposição que enfrentamos agora certamente
fracassará. Ganharemos nossa liberdade porque a herança sagrada de nosso país e
a eterna vontade de Deus estão incorporadas nas nossas sonoras exigências.
Antes de encerrar, sinto-me impelido a mencionar outro ponto em sua declaração
que me perturbou profundamente. Vocês calorosamente elogiaram a força policial
de Birmingham por manter a “ordem” e “impedir a violência”. Duvido que teriam
elogiado tão calorosamente a força policial se tivessem visto seus cães
afundando seus dentes em negros desarmados, pacíficos. Duvido que teriam
elogiado tão rapidamente os policiais se fossem observar seu tratamento
horrível e desumano dos negros aqui na prisão municipal; se fossem vê-los
empurrar e amaldiçoar velhas mulheres negras e jovens meninas negras; se fossem
vê-los estapear e chutar velhos homens negros e jovens meninos; se fossem
observá-los, como fizeram em duas ocasiões, negar-nos comida porque queríamos
cantar nossa oração juntos. Não posso acompanhá-los no seu louvor ao
departamento de polícia de Birmingham.
É verdade que a polícia demonstrou um nível de disciplina ao
lidar com os manifestantes. Nesse sentido, eles se conduziram um tanto
“pacificamente” em público. Mas com que propósito? Para preservar o sistema
maligno da segregação. Ao longo dos últimos anos, continuamente preguei que o
pacifismo exige que os meios que usamos devem ser tão puros quanto os fins que
buscamos. Tentei deixar claro que é errado usar meios imorais para alcançar
fins morais. Mas agora tenho de afirmar que isso é tão errado, ou talvez ainda
mais errado, quanto usar meios morais para preservar fins imorais. Talvez o Sr.
Connor e seus policiais tenham sido um tanto pacíficos em público, como foi o
coronel Pritchett em Albany, Geórgia, mas eles usaram os meios morais do
pacifismo para manter o fim imoral da injustiça racial. Como T. S. Eliot disse:
“A última tentação é a maior traição: fazer a coisa certa pelo motivo errado.”
Gostaria que vocês tivessem louvado os sit-inners e
manifestantes negros de Birmingham pela sua coragem sublime, sua disposição
para sofrer e sua disciplina incrível em meio a uma grande provocação. Um dia,
o sul reconhecerá seus verdadeiros heróis. Eles serão os James Merediths, com o
nobre senso de justiça que lhes permite enfrentar bandos zombeteiros e hostis,
e com a solidão agonizante que caracteriza a vida do pioneiro. Eles serão as
velhas, oprimidas, castigadas mulheres negras, simbolizadas em uma velha mulher
de setenta e dois anos de idade de Montgomery, Alabama, que se ergueu com um senso
de dignidade e com seus iguais decidiu não viajar em ônibus segregacionistas, e
que respondeu com profundidade agramatical a alguém que lhe indagou sobre seu
cansaço: “Meus pé está cansado, mas minha alma está em paz.” Eles serão os
estudantes colegiais e universitários, os jovens sacerdotes do evangelho e uma
multidão de seus pais, corajosa e pacificamente sentando-se em aparadores e
dispostos a ir para cadeia por amor à consciência. Um dia, o sul saberá que
quando esses filhos deserdados de Deus sentaram-se em aparadores, estavam na
verdade fazendo jus ao que há de melhor no sonho americano e o que há de mais
sagrado nos valores de nossa herança judaico-cristã, desse modo trazendo nosso
país de volta àqueles grandes poços de democracia que foram cavados em
profundidade pelos pais fundadores na sua formulação da Constituição e da
Declaração de Independência.
Nunca escrevi uma carta tão longa. Temo que seja longa demais
para tomar seu tempo precioso. Posso lhes garantir que teria sido muito menor
se a tivesse escrito em uma mesa confortável, mas o que mais se pode fazer
quando se está sozinho em um cela apertada a não ser escrever longas cartas,
pensar longos pensamentos e rezar longas orações?
Se disse algo nessa carta que exagera os fatos e indica uma
impaciência imoderada, peço que me perdoem. Se disse algo que atenua os fatos e
indica uma paciência que me permite conciliar-me com algo menor do que a
fraternidade, peço a Deus que me perdoe.
Espero que essa carta encontre-os fortes em sua fé. Espero
também que as circunstâncias em breve permitam que me encontre com cada um de
vocês, não como um integracionista ou um líder dos direitos civis, mas como um
colega clérigo e um irmão cristão. Tenhamos todos esperança em que as nuvens
negras do preconceito desapareçam em breve e a neblina profunda da
incompreensão dissipe-se das nossas comunidades cheias de medo, e que em um
amanhã não muito distante as estrelas radiantes do amor e da fraternidade
brilhem sobre nosso grande país com toda a sua beleza cintilante.
Sinceramente, pela causa da Paz e da Fraternidade, Martin
Luther King, Jr.
16 de abril de 1963.
_______
*Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal –
Hannah Arendt, livro que deveria ser obrigatório em todas as escolas do mundo.
Fonte da foto e da carta de Martin Luther King AQUI
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