Daiara Figueroa, 31 anos, professora. Foto de Igo Estrela/Revista Época.
Não sei quantas vezes já fui estuprada, mas sei que
nunca denunciei nenhum dos agressores. E é sobre nunca ter denunciado que quero
falar.
Nunca contei pra ninguém da minha família tudo que
aconteceu comigo. Então, foi bem difícil tomar a decisão de escrever esse
texto. Não, não vou expor nenhum agressor, não vou denuncia-los, até porque
fiquei calada por tanto anos e denuncia-los agora não terá resultado nenhum,
digo judicialmente. Mas, sinceramente, espero que um dia possam ler esse texto
e compreender o mal que me fizeram. O mal que essa sociedade fez e faz a
vitimas de violências sexuais/físicas e psicológicas.
Não vou contar sobre os abusos, estupros e
violências que já sofri. É algo que doí muito lembrar, já tenho que conviver
com meus traumas, e, não quero ficar falando, comentando e dizendo o que
aconteceu comigo. Já contei na análise, já lidei com muita coisa na análise,
então peço que não me perguntem o que aconteceu. E peço que ouçam essa vitima
que hoje é feminista, e, que não teve coragem de denunciar e tem que lidar com
isso. Com tudo isso. Não é fácil, nenhum pouco fácil, mas vamos lá!
Sempre vejo muitas pessoas questionando vitimas
quando essas demoram a fazer uma denuncia, ou quando são “salvas” por outras
pessoas que decidiram denunciar o agressor: “Por que ela não denunciou
antes?”, “Por que ela não pediu ajuda?”, “Por que não gritou?”…
Mas será que essas pessoas já se questionaram: “Por que tantas vitimas não
conseguem denunciar?”, pois então, vamos fazer esse esforço e refletir
sobre isso.
Precisamos mudar essa lógica de culpar a vitima,
inclusive por não ter denunciado.
Há um estigma enorme em denunciar as agressões
sexuais e/ou físicas. Denunciar antes de tudo é se expor ao julgamento alheio,
quando deveria ser “se expor ao acolhimento alheio”. Deveríamos acolher as
vitimas e não julga-las como é o que acontece hoje. Pergunte a qualquer vitima
de violência sexual que tenha denunciado em alguma delegacia ou para a
família/amigos como ela foi tratada, vocês vão perceber como o acolhimento é
zero e o julgamento/culpabilização é feito aos montes.
Comecei a carregar o status de “não-vitima” na
tentativa de diminuir mais o sentimento de impotência que sentia depois da
primeira vez que fui estuprada. E carregar o status de não-vítima, entenda aqui
que não tive coragem de denunciar por medo do julgamento, por medo de não
acreditarem em mim.
A pior parte de carregar esse status sendo
feminista é saber que sim, estou protegendo muitos homens. Estou protegendo de
alguma forma muito absurda o bem estar de muita gente. Ao mesmo tempo tenho que
lidar com o meu mal estar ao ver os agressores bem. Se relacionando com outras
pessoas, mulheres, crianças, vivendo plenamente e sem culpa… Enquanto carrego
os traumas que me causaram. Enquanto carrego o medo de me julgarem se outras
pessoas souberem de tudo o que aconteceu. Eles vivem, eu sobrevivo.
Nós, vitimas silenciadas pelo medo, sobrevivemos.
Cresci em uma cidade pequena e a primeira vez que
ouvi sobre uma mulher vitima de violência sexual, era bem nova, tinha uns 7 ou
8 anos. Me lembro que ela foi julgada culpada por estar andando sozinha na rua
de noite. Me marcou muito aquilo. Logo cedo foi me falado que ser vitima de
alguma violência assim não era bom, porque estragaria a vida completamente. “Quem
vai querer se casar com uma moça assim?“, “Que futuro ela vai ter agora”.
Sem questionar o agressor, sem culpar o agressor. A vida dele não foi perdida
ou prejudicada…
Quando tinha uns 9 para 10 anos, passava uma novela
dessas de época no horário das 18hs na Globo, não me lembro o nome, mas me
lembro muito bem de um episódio onde uma personagem adolescente é estuprada
pelo padrasto e a mãe a coloca pra fora de casa, acusando-a de ter provocado o
cara. Essa adolescente acaba sendo estuprada por uma tropa de soldados e vai
morar em um puteiro, que foi o único lugar que uma mulher vitima de violência
sexual poderia ser “acolhida”.
Aquilo me marcou muito, principalmente pela
naturalidade em que as pessoas adultas assistiam aquela cena, sem questionar o
absurdo dela. Sem falar “que absurdo culpar a vitima” e o cara ficar livre.
Passei minha infância, adolescência e juventude
ouvindo as vitimas serem culpadas, julgadas ferozmente. E infelizmente ainda
vivemos em uma sociedade que culpabiliza as vitimas.
Como poderia me sentir segura pra denunciar o que
houve comigo? Como uma criança pode se sentir segura em denunciar as violências
que sofrem se toda a sociedade tem uma cultura de culpar as mulheres pelas
violências? Como adolescentes podem se sentir seguras em denunciar? Que mulher
adulta tem segurança pra denunciar?
Não há o mínimo de acolhimento.
Hoje entendo os motivos pelos quais nunca denunciei
e que também faz inúmeras mulheres/meninas não denunciarem. Medo!
Medo de ser julgada, de ser apontada, de receber
sanções sociais no meio familiar e de amigos. De ser excluída dos espaços.
Porque é isso que acontece com vitimas. Ficar calada sobre as violências que
sofre, coloca as mulheres em um caminho de dor solitário. Ela permanece com
acesso em todos os espaços e é aceita e bem recebida enquanto não falar, não
denunciar, não apontar as violências que sofre/sofreu.
Quando você pensa a relação de culpabilização da
vitima com “proteção da família tradicional”, fica ainda mais complexo tudo
isso, e nojento. Mais de 70% dos casos de estupro no Brasil
ocorrem dentro dos ambientes familiares e, quando vitimas tentam denunciar são
muitas vezes caladas pela própria família. Cansei de conhecer vitimas de
violência que me contaram sobre os familiares tentarem resolver o “problema”
dentro do ambiente familiar, sem chamar a policia, sem denunciar para fora, com
o intuito de não manchar o nome da família.
Imaginem quantas meninas ouviram/ouvem: “Para de
ir lá”, “Nunca mais fique sozinha com ele”, “Não conte pra
ninguém, vou falar pra ele parar de fazer isso“. (Essas frases são reais,
ouvi de amigas vitimas). O status de família tradicional precisa ser tão
protegido, que silenciar as vitimas é apenas mais uma maneira de deixar essa
instituição “sagrada” bem protegida.
Não sabemos acolher as vitimas, mas sabemos muito
bem como proteger os agressores. Eu mesmo faço isso, em uma tentativa insana de
me proteger um pouco que seja também, dessa sociedade que permite que homens
violentem meninas/mulheres e que elas sejam as consideradas culpadas. Mas essa
realidade precisa mudar.
Está mais do que na hora de aprendermos a acolher as
vitimas e culpar os agressores. Precisamos aprender a receber as denuncias,
precisamos desaprender a proteger agressores e precisamos aprender a culpa-los.
Vivo perguntando aos homens: “É tão confortável
assim viver em uma sociedade que ensina mulheres a terem medo de vocês?”…
Eu digo com toda a dor do mundo, não é nada confortável pra mim viver em um
mundo com medo de denunciar os agressores. Não é nada confortável pra nenhuma
mulher viver assim. Alguns homens já me responderam que essa cultura machista faz
com que eles não tenham a mínima noção sobre o que é ser mulher, sobre as
violências que nós, meninas/mulheres cis e trans, estamos submetidas. E isso é
bizarro.
Vivemos em uma cultura violenta e que usa de muita
violência para silenciar as próprias violências. É violento culpar as vitimas,
é violento pra vitima se ver protegendo agressores e é violento pra vitima ver
o agressor ser protegido quando denuncia.
Venho perguntado aos Pais: “A educação que você
esta dando para suas filhas e filhos, está deixando elas e eles seguros ou com
medo para denunciarem as violências que sofrem/podem sofrer?”, “A
educação que você está dando, ensina seus filhos a abusarem de outras meninas?”…
O que eu sei é que não quero mais carregar o status de “não-vitíma”, muito menos
carregar o status de “culpada”. A culpa nunca é da vitima, é de quem agride.
Dito tudo isso quando uma vitima denuncia, acolha
não julgue. Quando um agressor é exposto, culpe-o não o defenda.
Enquanto ao meu silêncio em relação aos agressores,
sim, vou continuar com ele. Não tenho coragem de contar tudo que já aconteceu
comigo, isso já é doloroso de mais pra mim. Porém não quero viver em uma
sociedade onde mulheres tenham o mesmo medo que eu. Quero que elas consigam
contar. Denunciar e que os agressores sejam julgados e cumpram as devidas penas
e sanções.
Enquanto sigo protegendo aqueles que me
violentaram, luto para que o mundo pare de passar pano pra agressões, para que
em brigas de marido e mulher sejam metidas colher sim, para que crianças
sintam-se seguras para denunciar os abusos dentro de casa e não sejam julgadas
por isso, para que vitimas ao exporem uma violência não sejam culpadas.
Autora
Jussara
Cardoso é estudante de ciências políticas. Vadia de carteirinha, biscate de
coração e empoderada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe! Adoraria ver publicado seu comentário, sua opinião, sua crítica. No entanto, para que o comentário seja postado é necessário a correta identificação do autor, com nome completo e endereço eletrônico confiável. O debate sempre será livre quando houver responsabilização pela autoria do texto (Cida Alves)