"Quando eu não tinha o olhar lacrimoso
Que hoje eu trago e tenho...
Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus
Fazendo eu mesmo o meu caminho
Por entre as fileiras do milho verde que ondeiam
Com saudades do verde marinho
Eu era alegre como um rio
Um bicho, um bando de pardais".
Belchior
Cartografia de uma paixão minúscula
Em meados do ano passado compartilhei em meu perfil uma foto em que interpretava uma figura feminina lasciva, com pinta e olhos de Marilyn. Minha filha mais velha, que carrega na face esquerda uma linda e autêntica pinta, ao ver o meu retrato comentou: “minha mãe tem inveja de minha pinta”.
Ao ler a palavra inveja, senti um sorriso se desenhar em um canto de minha boca. Na fração de minuto que ele durou em meus lábios, uma bobina de lembranças se desenrolou e conclui: não é inveja! A palavra que define o meu sentimento por essa marquinha circular e negra na pele é paixão! Nesse instante, fiz uma pequena promessa, um dia vou contar uma velha estória para minha filha. Uma estória de paixão a primeira vista.
Ontem à tarde, ao ouvir a música “Alucinação” de Belchior, decidi que estava na hora de contar a estória de uma paixão despertada por uma imagem que surge do tubo de uma TV. Para esclarecer o impacto dessa aparição em minha vida tenho que recuar um pouco no tempo. Nascer em uma cidade pequena e ser filha de uma humilde e numerosa família me proporcionaram muitas vantagens. Aprendi a andar sem medo pela cidade e a viver meio jogada nos dias. A experiência de brincar por horas a fio em ruas de terra vermelha e de desperdiçar por puro gosto o tempo em bancos de madeira imprimiu delícias em meu corpo.
Como se não bastasse o tempo esticado e a liberdade de ir e vir, o clima tórrido de minha cidade criava sensações fantásticas. No calor escaldante de agosto eu via o horizonte ficar mole no ar. No tempo da chuvarada sem fim os rodapés de muros e as calçadas se vestiam de veludo verde. Amparada pelo álibi do sufocante calor, eu - que não era a Remédios de Macondo*, podia me amotinar contra o uso de roupas. Até os 5 anos só vivia de calcinhas, depois dessa idade passei a trajar largas camisolas ou saiões, que só tirava quando tinha que vestir o uniforme ou colocar roupa de festa. Por uma década, meu corpo de menina viveu o gozo da frouxidão. Mas desafortunadamente, o anunciar da puberdade encerrou o tempo de largura, imensidão e velocidade em minha vida.
Quase cinco anos de chuva em Macondo
Sem bater na porta e pedir licença “veio o tempo negro e a força fez comigo o mal que a força sempre faz”. Por medo dos riscos que a mocidade implica nas meninas, usurparam de meu espírito a alegria de rio e do meu corpo a liberdade de correrias e quintais. Fui aquartelada em nome de uma ordem arbitrária: jamais ficar na casa dos outros ou de brincar na rua com a molecada da vizinhança ou da escola. Nesse momento conheci a experiência da solidão.
Solidão construída por cuidados e temores maternos. Temores que sempre assombram mães de meninas. Pobres mãezinhas, porque será que o mundo impôs a elas a sisifica missão de conter água nas mãos, de tentar aprisionar o que não se encarcera por ser de natureza líquida? A água sempre buscará brechas, fendas para cumprir a sua sina de escorrer.
Imersa em um claustro de móveis opressores e sob a ordem do recato, tive que aprender a controlar o meu ímpeto de ruas, enxurradas e galhos de árvores ouvindo música. Por compaixão, a grande vitrola de pés de madeira e sapato de metal dourado, então minha inseparável companheira de longas tardes, me apresentou Elis Regina, Chico Buarque, Elvis Presley, Secos e Molhados, Luiz Gonzaga e algumas músicas clássicas da trilha sonora da novela “O bravo”.
De consolo a música se converteu em alimento para o meu corpo. Faminta desse pão, um dia eu encontrei a música de Belchior. De pronto gostei de sua voz de navalha e da fúria que as canções “Apenas um rapaz latino americano”, “À palo seco”, “Saia do meu caminho”, “Galos, noites e quintais” e “Coração Selvagem” exalavam. Mas foi a arcaica masculinidade - feita de bigode indiscreto, cabelos longos, olhos miúdos quase ocultos por um chapéu e, especialmente, uma pintinha no rosto, que me deixou apaixonada pelo rapaz que cantava: “a felicidade é uma armas quente, queeeeeente, queeeeente.....".
No dia seguinte à descoberta do rosto pretérito - momentos antes de ir à escola, fui sorrateiramente à penteadeira de minha mãe, fiz uma pinta no meu rosto com o lápis creon, na loja do meu pai peguei um boné, vesti a saia caqui pregueada e a blusa de tergal branca, assim estava pronta. Toda “Lord” para viver as horas mais alegres do dia. Corri para a escola, que ironicamente ostentava o nome de um ditador militar, atravessei o portão e me posicionei na fila da porta da classe vestida de um “rapaz latino americano”.
Remédios, a bela, subindo ao céu de corpo e alma
Estranhamente e por dias seguidos, eu não sofri nenhuma repreensão de meus pais nem de minha professora por usar esse dramático figurino. Para meu deleite e sem sofrer sanções públicas, assisti aula, merendei e corri pelo imenso pátio da escola tatuada com uma nova paixão, a pinta do Belchior. Só não conseguia entender como nenhum adulto percebeu que o meu travestismo era escandaloso, pois semelhante à voz do rapaz latino, ele denunciava um sensual e subversivo encanto de uma menina de 10 anos por um rapaz de pinta e bigodes fartos. Puff, como são cegos os adultos! Obcecados em reprimir e controlar a sexualidade das meninas, eles vêm malícia onde há inocência e não enxergam o veio, o belo nascedouro, por onde genuinamente a sensualidade flui.
É isso filha, tenho paixão por indiscretas pintas no rosto. E para minha alegria essa paixão reapareceu mais duas vezes em minha vida. Na segunda ela emergiu do rosto de um jovem estudante de câmara na mão e de espírito inquieto pelo qual me enamorei aos 15 anos e na última vez da bochecha de uma menina de cabelos revoltos e alma de mar manso que saiu de meu ventre.
Cida Alves
Goiânia, 01 de maio de 2014.
Uma carta de mãe para filha, inspirando na música “Alucinação” de Belchior e na expressão “Cida Alterada” dita pelo querido e velho amigo, o ator e diretor Deusimar Gonzaga, ao ver uma foto em que porto em meu rosto uma pinta inventada.
*Remédios é uma personagem do livro “Cem anos de solidão” de Gabriel García Marquez, acesse um trecho do capítulo que narra a sua história AQUI.
Fonte das ilustrações: CEM ANOS DE SOLIDÃO POR CARYBÉ
Fotos capturadas nos sites BRASILPOST e VAGALUME
Cida!
ResponderExcluirQue narrativa mais envolvente, lindaaaa! Em alguns momentos me percebi segurando a respiração de tão tocada pelas suas palavras vivas, isso mesmo, "vivas", senti sua vivacidade que fez meu coração palpitar em alguns momentos...ai Cidaaaa! dormirei com uma sensação doce e terna que suas memórias despertaram em minhas minhas memórias...Eis a beleza da vida, sentir-se mais "viva".
Bjim de saudades!
Suelaynne (Sue)
Meu encanto pelo seu canto. Beijo do Nelson
ResponderExcluir